Então, ontem a FCC (Comissão Federal de Comunicações) dos EUA revogou o princípio de neutralidade da internet. Quando se fala isso num bar, num papo com pessoas não tão por dentro das questões tecnológicas, o que se ouve é um: O que é isso?
Neutralidade na internet, uma das bases da web tal qual conhecemos, significa que qualquer site, qualquer app, o que for, sempre está submetido aos mesmos limites de velocidade para o usuário (você), estes definidos apenas pelo tipo de plano que se compra da operadora. Em outras palavras, é o que determina que Facebook, Netflix, Google, um blog qualquer, um site experimental, o que for, rodará na mesma rapidez (ou lerdeza, a depender do ponto de vista), no teu celular, no teu PC, onde for.
Com a derrubada dessa isonomia, provedores americanos poderão negociar com as empresas para que existam estradas diferenciadas no tráfego da internet: umas sem trânsito, rápidas (mas destinada tão-somente às empresas que pagarem o pedágio por isso); outras congestionadas, lerdas (para as que não arcarem com o pedágio); ou mesmo, em teoria, há a possibilidade de simplesmente fechar a via para alguns. Dessa forma, o Netflix poderá pagar para ser mais veloz que um concorrente, como a HBO. Ou o Facebook conseguirá fazer o mesmo para se tornar superior, nesse quesito, ao Snapchat.
E daí? “Sou brasileiro, nada tenho a ver com isso”, pode-se concluir. Engana-se quem pensa assim.
De início, seremos afetados indiretamente. O Marco Civil da internet nacional proíbe essa quebra da neutralidade da web. Ou seja, aqui os serviços online terão de seguir em pé de igualdade; brasileiros só serão afetados diretamente quando viajarem para a Disney. Porém, os provedores do país avaliam usar o caso americano como base para requisitar a Michel Temer uma revisão da situação nacional, também. Será que a regra estabelecida pelo Marco Civil acabará jogada no lixo?
Contudo, há outras consequências, não tão imediatas, que nos prejudicam. Não só os brasileiros. Todo o mundo. Literalmente.
A principal delas é que, sem o princípio da neutralidade, como surgirão novos apps, sites e redes sociais? Explico melhor. Quando o Instagram foi lançado em 2010 – a história é tema do livro O Clique de 1 Bilhão de Dólares, de minha autoria –, ele era desenvolvido apenas pelos dois fundadores, o americano Kevin Systrom e o brasileiro Michel “Mike” Krieger. Apesar da origem de ambos em famílias abastadas, como empreendedores eles não nadavam em dinheiro. Só que a boa ideia, independentemente dos investimentos por trás da mesma, foi o suficiente para alcançar o sucesso. Afinal, na internet, eles e o Facebook, já um gigante, eram iguais. Uma foto postada no então novato Instagram demoraria o mesmo para carregar em seu celular do que uma compartilhada no rival Facebook.
Mas e se o Facebook fosse mais veloz? Ou seja, se para acessá-lo, conferir as fotos nele publicadas etc., fosse mais rápido do que realizar o mesmo no Instagram. Será que tantos usuários iriam aderir à novidade? Será que as pessoas teriam paciência frente à lerdeza do apps de fotos? Ou elas desencanariam e ficariam no Facebook, no qual os dados navegariam mais rápidos, em uma estrada pedagiada, paga pelo próprio Facebook? Provavelmente, o Instagram, nesse cenário, não teria a menor chance de competir com o rival onipresente – e que teria fundos suficientes para pagar aos provedores para circular pela estrada com menor trânsito da web.
Essa lógica exibe como ideias inovadoras, daquelas criadas por dois garotos na garagem de casa, terão menor chance de vingar online, agora que o princípio da neutralidade foi derrubado nos EUA. Especialmente porque é nesse país, em especial no Vale do Silício, onde costumam surgir tais projetos ousados. Frente a essa limitação, sairão prejudicados os empreendedores em início de carreira e, principalmente, os usuários, todos nós.
E a situação se agrava. Com essa fronteira, de difícil transposição, estabelecida para quem quer fundar um novo app ou site nos EUA, é inevitável se estabelecer um monopólio ainda maior no meio digital. Hoje, ele já é abusivo. As cinco companhias de tecnologia americanas mais valiosas – Amazon, Apple, Facebook, Alphabet (dona do Google e do YouTube) e Microsoft – são também as cinco empresas americanas mais valiosas no geral, frente a todas as outras, de todos os outros setores. Se não bastasse tamanho poder, o quinteto praticamente não tem concorrentes; e mesmo a rivalidade entre eles não é significativa, pois não se dá nos principais setores em que atuam.
O fim da isonomia da web irá ainda impedir que surjam novatos capazes de derrubar esses colossos do trono. Em efeito contínuo, a internet passará a se tornar um feudo governado por cinco monarcas, e com um ou outro plebeu tentando aparecer no meio; mas com mínimas chances, cada vez menores, de destronar um dos atuais reis.
E daí? O problema: quem impedirá que esses cinco façam o que bem entenderem com a internet na qual navegamos? Numa hipotética troca de comando em sua cúpula, um suposto novo manda-chuva da Amazon poderia, hoje, optar por bloquear o Netflix nos provedores que utilizem o serviço de nuvem (o maior do planeta) de sua marca, para privilegiar seu próprio serviço, o Prime. Ou o Google conseguiria fazer o mesmo para beneficiar, em definitivo, seu site de buscas, em detrimento de qualquer outro; em consequência, a empresa passaria a dominar o que buscamos e o que achamos online.
Em outras palavras, a internet viraria uma autocracia, não mais uma democracia. Num ambiente bem menos aberto – e divertido – do que é hoje.
Para acompanhar este blog, siga-me no Twitter, em @FilipeVilicic, e no Facebook.
Leia também
Tinder, IA e a padronização do amor (e de tudo)
Um teste do tribunal da internet