Em 7 de maio de 1824, quando estreou a Nona Sinfonia em Viena, Ludwig van Beethoven (1770-1827) estava funcionalmente surdo. Apesar disso, ele conseguiu reger sua derradeira peça musical, contando com as vibrações do andamento alegre e triunfante para guiá-lo. Desde que se tornou um jovem adulto, o caudaloso compositor alemão sofreu de perda auditiva progressiva, tornando-se em seus últimos anos incapaz de ouvir certas frequências de som ou distinguir alguns tons. Aos primeiros sinais da surdez, logo no início do século XIX, ele pediu ao seu médico, J.A. Schmidt, que a patologia fosse descrita publicamente quando morresse. “Na medida do possível, pelo menos, o mundo se reconciliará comigo depois da minha morte”, escreveu em uma carta para os irmãos. Cerca de dois séculos depois, um grupo de cientistas europeus chegou perto de descobrir o que de fato causara tanto infortúnio ao gênio alemão.
Os pesquisadores, oriundos de universidades na Alemanha, Áustria, Austrália, Bélgica, Estônia e Estados Unidos, extraíram DNA de mechas de cabelo que teriam sido de Beethoven. O sequenciamento, contudo, não ajudou a entender o que levou à perda paulatina da audição, nem as causas dos famosos problemas gastrintestinais, como era desejo do compositor. Por outro lado, a pesquisa mostrou que ele tinha uma predisposição para doenças hepáticas que, combinada com seus hábitos de bebida, provavelmente contribuiu para sua morte por hepatite B, em 1827. Em uma nota dissonante, descobriram também que a impressão genética não correspondia a vários parentes reconhecidos por parte de pai, sugerindo que alguém em sua família teve um caso nunca revelado. “Nosso objetivo principal era lançar luz sobre os problemas de saúde”, disse Johannes Krause, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, na Alemanha.
A equipe testou oito amostras de cabelo atribuídas a Beethoven. Durante as experiências, os pesquisadores identificaram que três delas não eram do músico, incluindo uma que teria sido cortada ainda no leito de morte pelo discípulo Ferdinand Hiller, então com 15 anos. A chamada “mecha de Hiller”, que em análises anteriores teria apontado para evidências de envenenamento do grande compositor, pertencia na verdade a uma mulher. As outras cinco, consideradas autênticas, foram colhidas em diferentes momentos entre 1820 e 1827. A chamada “mecha Stumpff’, do acervo pessoal de Kevin Brown, membro da American Beethoven Society, apresentava melhores condições de conservação. Foi desse chumaço que os pesquisadores extraíram o genoma, inutilizando cerca de 3 metros de fio, ratificado pela comparação com dados da população da região da Renânia do Norte-Vestfália, na Alemanha, consistente com a ascendência conhecida do musicista.
Ao examinar mais detidamente os dados, os cientistas acabaram iluminando segredos não documentados sobre a família Beethoven. Uma possível traição emergiu da análise genética de parentes vivos do compositor na Bélgica. Alguns compartilham um ancestral paterno comum no fim dos anos 1500 e início dos anos 1600, mas nenhum deles “deu match” no cromossomo Y encontrado nas amostras de cabelo autênticas — o que sugere uma relação extraconjugal na linha paterna. O evento teria ocorrido entre o nascimento do ancestral Hendrik van Beethoven, em Kampenhout, na Bélgica, em torno de 1572, e a concepção de Ludwig van Beethoven sete gerações depois, em 1770, em Bonn, na Alemanha. “Através da combinação de dados de DNA com documentos de arquivo, pudemos observar a discrepância entre a genealogia legal e biológica de Beethoven”, afirma o geneticista Maarten Larmuseau, da Universidade Católica de Leuven, que fez parte do levantamento.
Apesar de tudo, a preocupação de Beethoven em ver revelada a razão de sua surdez ainda não foi sepultada. Documentado em um artigo na revista Current Biology, o trabalho liderado por Tristan Begg, então mestrando de arqueologia na Universidade de Tübingen, começou no fim de 2014 e levou oito anos para compor uma primeira leva de conclusões. Portanto, está longe de ter se encerrado, embora seu principal autor tenha declarado publicamente que não pretende se envolver mais em trabalhos com esse perfil. Os sequenciamentos feitos até o momento, todos parciais, serão tornados públicos para que outras pesquisas possam se beneficiar das informações já processadas. Afinal, há pelo menos mais 24 mechas de cabelo atribuídas ao compositor alemão aguardando para serem remexidas e inspecionadas em nível intracelular. “Esperamos que, com isso, as questões remanescentes sobre sua saúde e genealogia possam algum dia ser respondidas”, diz Begg. Beethoven agradece.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834