Pode soar frustrante para o ser humano, que já pisou na Lua e descortinou estrelas no espaço, dar-se conta de que o universo escondido dentro de uma cabeça não foi completamente compreendido. A humanidade ainda vê mistérios quando se debruça sobre o órgão que lhe permite pensar, imaginar e dominar o mundo. Freud, um dos célebres detetives da mente humana, poderia dizer que a falta de conhecimento sobre o nosso próprio cérebro, em pleno século XXI, seria uma típica ferida narcísica, daquelas que denunciam quão pequenos e ignorantes somos diante da complexidade da vida. Mas o desafio instiga, e, na busca por decifrar os detalhes que tornam a massa cinzenta única, um grande passo foi dado agora com os achados de um projeto encabeçado pelo Google e pela Universidade Harvard. Não resolvemos o labirinto cerebral, mas estamos mais próximos de alguma solução.
Cientes da dificuldade que é examinar toda a imensidão encefálica — uma rede de mais de 80 bilhões de neurônios e 1 quatrilhão de conexões entre eles —, os cientistas decidiram se debruçar sobre nada menos que 1 milímetro cúbico de cérebro, o correspondente a meio grão de arroz. Missão fácil? Eles levaram onze meses para completar o mapeamento do material com o apoio de um novo e poderoso algoritmo de inteligência artificial. Os resultados, publicados na revista acadêmica Science, dão a entender por que a equipe se limitou a uma amostra tão ínfima. Seus poderes são assombrosos.
Em uma migalha de tecido nervoso, convivem ao redor de 57 000 células aptas a perfazer 150 milhões de sinapses, o que produz uma capacidade de acumular o equivalente a 1,4 milhão de gigabytes de informações — número de causar inveja a qualquer computador de última geração. Em um arquivo dessa magnitude, poderíamos armazenar 280 000 filmes ou 1,4 bilhão de documentos em formato PDF com 500 páginas cada. A riqueza, porém, não se resume à escala quantitativa.
Os pesquisadores encontraram alguns locais raros onde os neurônios estavam ligados uns aos outros por mais de cinquenta sinapses. Isso é incrivelmente incomum, visto que mais de 96% das células nervosas têm apenas uma conexão, e mais de 99% possuem três ou menos. Essas ligações estendidas podem lançar luz sobre como memórias relevantes são codificadas ou como o aprendizado de comportamentos é automatizado. Além disso, descobriu-se, de forma inédita, que alguns axônios, os tentáculos dos neurônios que lhes permitem transmitir os impulsos adiante, se enrolavam em nós, como redemoinhos. Por que isso acontece? Esse segredo os especialistas ainda terão de desvendar.
De forma geral, o trabalho capitaneado pelo Google fornece uma visão milimétrica e sem precedentes do córtex temporal — a região de onde foi retirada a amostra, associada ao processamento de informações e lembranças. Graças aos recursos de ponta, o saldo são dados valiosos que deverão catalisar avanços com implicações práticas e potencial terapêutico. “Um mapeamento tão detalhado poderá auxiliar no desenvolvimento de tratamentos neurológicos e psiquiátricos mais eficazes e personalizados”, diz o neurocirurgião e neurocientista Fernando Gomes, professor da USP. “Também abre portas para as chamadas interfaces neurais, o que deverá beneficiar a humanidade com novas tecnologias.”
A saga para desbravar a mente continua, é claro. Velhas e novas perguntas pedem respostas. Como opera a consciência do ponto de vista fisiológico, por exemplo? Até que ponto será possível identificar e modular conexões cerebrais específicas, alterando até mesmo nosso senso de identidade? Se estamos preparados ou não para lidar com tamanha complexidade, só o tempo dirá. No caminho, estabelecer e cumprir regulamentações éticas ainda será um pilar bem-vindo.
Os cientistas do projeto compararam as descobertas sobre aquele meio grão de arroz de tecido nervoso com a sensação de deparar com uma densa floresta, capaz de intimidar os visitantes. Faz sentido, até porque muitos enigmas persistem. “Decifrar por completo o cérebro me parece um horizonte distante, haja vista a quantidade de conexões complexas e até possivelmente mutáveis ali dentro”, afirma Gomes. Mas o mesmo ser humano que deslindou o espaço não vai sossegar até entender melhor esse universo dentro de uma casca de noz.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896