Foi na Grécia antiga que tudo começou. O filósofo grego Teofrasto, discípulo de Aristóteles e seu sucessor no Liceu de Atenas, teve a ideia de pôr um bilhete enrolado dentro de uma garrafa, fechá-la e jogá-la ao mar. O sábio helênico teria usado o recurso para estudar as correntes oceânicas. Só mais tarde a prática se tornaria veículo para pedidos de socorro ou até de simples mensagens de esperança. No século XXI, o conceito entrou na órbita espacial. Em 1969, a Apollo 11 levou à Lua um disco de silício com mensagens de paz de líderes de mais de setenta países. Em 1977, as sondas Voyager 1 e 2 carregaram para o infinito e além dois discos dourados contendo tesouros da humanidade como a gravação do Prelúdio e Fuga em Dó do Cravo Bem Temperado, de Bach, na interpretação de Glenn Gould, e Johnny B. Goode, de Chuck Berry, com a curadoria do astrônomo e divulgador científico Carl Sagan (1934-1996). A ideia: esses frascos embebidos de civilização poderiam, lá na frente, ser decifrados por alienígenas — busca que nos fascina, aqui no planeta Terra.
Agora, com os avanços tecnológicos e a quase infinita capacidade de armazenamento, o sonho de gente como Sagan parece se multiplicar. E os receptáculos, que nos anos 1960 e 1970 eram fisicamente limitados, são capazes de carregar museus inteiros, com preferência para nomes ainda sem destaque, mas que representam a rica variedade de culturas do mundo.
Eis a ambição de um projeto batizado como Lunar Codex. Ele foi idealizado por Samuel Peralta, físico semiaposentado e colecionador de arte do Canadá. Trata-se de uma coleção digitalizada e miniaturizada de arte contemporânea, poesia, revistas, música, filmes, podcasts e livros de mais de 30 000 artistas de 158 países — inclusive do Brasil, é claro. “Como ainda não completamos o conteúdo das cápsulas e há muitos artistas brasileiros em nossos bancos de dados, é possível que muitos ainda sejam selecionados”, disse Peralta a VEJA. Entre os nomes já certos despontam os artistas plásticos Gustavo Ramos, Aline Brant, Lucio Carvalho e Melissa Meier, além do escritor Fábio Fernandes. Eles foram incluídos depois de cuidadosa busca em revistas de artes. “Pensar que a imagem de uma de minhas pinturas estará preservada na Lua me deixa emocionado”, disse Ramos a VEJA.
O lote do Lunar Codex está dividido em quatro “garrafas”. A primeira, batizada Orion, já voou ao redor da Lua no ano passado, como parte da missão Artemis I, da Nasa. Até o fim do ano, outros arquivos multimídia, as coleções Neon e Peregrine, serão instalados permanentemente em crateras no polo sul e numa planície do satélite dos namorados. A última, a coleção Polaris, ganhará o firmamento no fim de 2024. As coleções estão armazenadas em cartões de memória de uma inovadora tecnologia chamada NanoFiche, manufaturada com placas à base de níquel que podem armazenar até 2 000 páginas de texto por centímetro quadrado. É muito mais do que podia acondicionar os discos de quarenta anos atrás.
As duas iniciativas — a do final do século XX e a de agora — pretendem perpetuar o nosso tempo, feito de beleza, mas também de guerras, de elegância e estupidez, de delicadeza e grosseria. Jamais saberemos se alguém terá contato com o conteúdo a viajar pelo éter. Pouco importa, como registrou Sagan, lindamente: “Há apenas uma chance infinitesimal de que a placa seja vista por um único extraterrestre. Sua verdadeira função, portanto, é expandir o espírito humano, e fazer com que o contato com a inteligência extraterrestre seja uma expectativa bem-vinda da humanidade”. Não é pouca coisa alimentar essa quimera.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856