Foi um autêntico quebra-cabeça que, para ser concluído, consumiu mais de uma década, investigações em sete países, leituras minuciosas de ao menos 28 manuscritos e o recrutamento de tecnologias de última geração para revelar textos antes ilegíveis em obras queimadas por um incêndio. Toda essa aventura, a cargo do paleógrafo franco-italiano Emanuele Arioli, está por trás da descoberta de uma história perdida que faz parte de uma das mais famosas lendas da Idade Média, a saga do Rei Artur e seus guerreiros. O romance, recuperado e reconstruído sete séculos depois de escrito, acrescenta um novo herói ao fabulário da Távola Redonda. Segurant, o Bruno, como ele foi batizado, é o protagonista de O Cavaleiro do Dragão (Editora Vestígio), livro em que Arioli resgata e traduz, para o leitor contemporâneo, um capítulo até então desconhecido do imaginário medieval.
O primeiro contato do pesquisador de 36 anos com a narrativa deu-se ainda em 2010, quando ele se deteve em um pergaminho conservado na Biblioteca do Arsenal, em Paris: um copista havia escondido episódios da lenda em meio a uma coletânea de profecias. “Mas o manuscrito parava no meio de uma frase”, disse Arioli a VEJA. “Então formulei a hipótese de que não se tratava de episódios isolados, e sim dos restos de um romance perdido.” Essa foi a pista que deu início a um trabalho de detetive que se estenderia por anos e em bibliotecas de outras nações, resultando inclusive em uma tese de doutorado pela prestigiada Universidade Sorbonne.
Segurant é, seguindo à risca o roteiro típico da Idade Média, um dos cavaleiros mais fortes e valorosos de seu tempo. Após enfrentar e matar leões em sua terra natal, a Ilha do Não Saber, ele parte para os territórios do Rei Artur, onde irá encarar e vencer torneios. Até que uma bruxa, a cruel Morgana, lança um feitiço que conjura o aparecimento de um dragão ilusório, atrás do qual o herói partirá incansavelmente. A versão principal da história, escrita no norte da Itália em francês antigo entre 1240 e 1273, se encerra por aí, mas relatos compostos até o século XV trataram de ampliar o enredo e dar-lhe um fecho à altura. E isso só foi possível graças à odisseia do jovem Arioli.
O maior desafio do estudioso ocorreu na Biblioteca de Turim, alvo de um incêndio em 1904. “Trabalhei no meio de milhares de manuscritos carbonizados, com palavras ilegíveis a olho nu”, diz. Foi aí que a tecnologia operou seu passe de mágica. Arioli recorreu a um recurso chamado imagem multiespectral, que consiste na elaboração computacional de fotos tiradas com diferentes comprimentos de onda, do infravermelho ao ultravioleta. “Foi assim que consegui ler os textos e descobrir um episódio-chave da lenda: a luta de Segurant com o dragão”, afirma.
Essa revelação instala uma peça até então oculta no mosaico de mitos e novelas da Távola Redonda, criados e alimentados a partir de uma mistura de valores cristãos com crenças pagãs de povos que viviam no que hoje seriam a Grã-Bretanha e o noroeste da França. E Segurant, embora não tenha se sentado à icônica mesa do Rei Artur, ocupa um lugar inovador nessa rede de tramas. “Ele é um herói atípico, porque vive aventuras rocambolescas e persegue um dragão que é apenas uma alucinação”, diz Arioli. Aí estaria inclusive o poder literário da narrativa desvendada: a besta que o guerreiro quer destruir não passa de um demônio a iludir os sentidos. “Segurant já tem vários traços de Dom Quixote, o fidalgo que era louco pela cavalaria até perder a razão e perseguir quimeras, só que nasceu três séculos antes dele”, afirma o pesquisador, referindo-se ao livro de Miguel de Cervantes que, para muitos, inaugurou o romance moderno.
A lenda se tornou uma cruzada na vida do escritor franco-italiano. Além de decifrar e traduzir a narrativa para as línguas atuais, incluindo o português, ele encabeçou sua adaptação para um livro infantojuvenil, publicado pela Editora Yellowfante, e uma história em quadrinhos, recém-lançada no país pela Nemo. Sua saga também resultou em um documentário produzido pela televisão francesa e alemã, ainda inédito no Brasil. Inspirando-se no próprio trabalho de caçador de lendas, Arioli agora desenvolve o projeto de uma série de suspense sobre um historiador que resolve mistérios medievais e quer transformar as aventuras de Segurant numa animação. Quem sabe o autor, que também é ator — ele tem no currículo um filme que chegou ao Festival de Cannes —, não se empolga e leva a fantasia ao cinema. O quebra-cabeça, afinal, está montado. Só falta gravar.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905