O ser humano como o conhecemos habita a Terra há pelo menos 300 000 anos — pouquíssimo tempo, considerando que as estimativas da formação do planeta remontam a 4,5 bilhões de anos atrás. Ao longo desse curto período, a predominância dos feitos masculinos fez com que o papel da mulher na evolução da espécie fosse considerado menor e pouco significativo. Na Grécia antiga, o filósofo Aristóteles a descreveu como um “homem mutilado”. A ciência contribuiu para reforçar essa visão, sempre diminuindo a participação feminina no processo civilizatório e minimizando suas capacidades físicas e psicológicas. No século XVIII, ideias e técnicas médicas se empenharam em confirmar e justificar a desigualdade de gênero. Felizmente, novos estudos, baseados em uma mudança de perspectiva nas diversas áreas do conhecimento, estão mudando essa escrita.
Durante séculos, a medicina preencheu a falta de compreensão do corpo feminino com diagnósticos duvidosos e depreciativos, atribuindo-lhe “fraquezas” como a propensão à histeria e, mais recentemente, manifestações de descontrole devido à tensão pré-menstrual (TPM) — esse último conceito, introduzido na década de 1930, foi usado para impedir que mulheres integrassem o programa espacial dos Estados Unidos, sob a alegação de serem “temperamentais”. Também se disseminou a ideia de que diferenças estruturais, hormonais ou cerebrais indicavam funções cognitivas distintas entre os gêneros — uma balela que a neurocientista britânica Gina Rippon tratou de corrigir. Rippon pesquisou a fundo a noção equivocada de que o cérebro feminino, em média 10% menor do que o masculino, tem capacidade intelectual inferior. Sua conclusão: as diferenças não estão no funcionamento do órgão, altamente plástico e moldável, mas na influência de fatores como ambiente e cultura.
Outra concepção carregada de preconceito, a do homem primitivo como caçador e provedor por excelência, foi recentemente desmistificada em um estudo liderado pelas cientistas Cara Ocobock, da Universidade de Notre Dame, e Sarah Lacey, da Universidade de Delaware, ambas nos Estados Unidos. A investigação mostrou que, na verdade, as mulheres eram — e ainda são — mais aptas a atividades de resistência física, enquanto os homens se destacam naquilo que demanda força e explosão muscular. A explicação fisiológica, baseada no papel de hormônios femininos como o estrogênio e a adiponectina em organismos adaptados a esforços de longa duração, é corroborada por achados arqueológicos: na pré-história, as mulheres não apenas participavam ativamente da caça, compartilhando riscos e ferimentos, como contribuíam decisivamente para seu sucesso, por serem mais resilientes. “Abrimos uma nova perspectiva para uma questão antiga, especialmente neste momento cheio de controvérsias sobre sexo e gênero”, afirmou Ocobock a VEJA.
Seguindo esse raciocínio, a pesquisadora Cat Bohannon, no livro Eva (Companhia das Letras), inverte o roteiro das visões tradicionais sobre a evolução humana ao argumentar que as mulheres, e não os homens, foram a força motriz do avanço da espécie. Bohannon destaca em seu trabalho o poder muitas vezes esquecido do corpo feminino, aquele que concebe, alimenta, cuida e vive mais, e discorre também sobre o impacto das estruturas sociais e matriarcais no desenvolvimento infantil. A pesquisadora relata que passou os últimos dez anos questionando cientistas, com a intenção de corrigir desequilíbrios e ressaltar as limitações do “raciocínio machista”. Para ela, as inovações que permitiram ao Homo sapiens sobreviver e progredir não foram a lança, o fogo, a roda ou a eletricidade, mas sim a capacidade de dar à luz, amamentar e nutrir, fomentada em uma coletividade essencialmente feminina.
Sem essa cooperação, segundo ela, nossos antepassados, que remontam ao célebre fóssil de Lucy e outras fêmeas ancestrais de milhões de anos, teriam desaparecido na pré-história, deixando apenas um rastro de ossos preservados. “As pessoas estão começando a perceber que estamos contando nossa história de maneira errada”, diz Bohannon. “Meu esforço é no sentido de revisar os fatos e incluir essa metade da nossa espécie na equação”, explica a pesquisadora. Por mais que a ciência tenha ignorado e desrespeitado os feitos femininos ao longo da história, torna-se cada vez mais claro que só chegamos aonde chegamos por causa deles. Quanto mais estudamos as mulheres — seus hormônios, seus circuitos cerebrais e suas realizações sociais —, mais dispostos ficamos a rejeitar preconceitos e repensar seu papel decisivo na formação dos lares e das sociedades de hoje. É o sexo frágil mostrando sua força.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900