Os números não mentem. Ninguém matou mais gente do que ele na história da humanidade. É o mais letal dos caçadores no planeta, com uma média de 2 milhões de vítimas por ano desde 2000. Só para constar, nós, bípedes, estamos em segundo lugar, com quase 450 000 assassinatos anuais. Não tem para ninguém. Desgraçadamente, não há como fugir dele e de seu exército de 110 trilhões, a não ser em locais como a Antártica, a Islândia, as Ilhas Seychelles e em algumas ilhotas da Polinésia Francesa, onde uma série de fatores climáticos torna sua sobrevivência inviável. Estamos cercados por seu arsenal de quinze armas biológicas. E não é de hoje, como mostra o excelente livro O Mosquito: a Incrível História do Maior Predador da Humanidade (Intrínseca), do canadense Timothy C. Winegard, doutor em história pela Universidade de Oxford e professor da Colorado Mesa University.
A fama vem do período jurássico. Ao longo de milênios, o inseto de olhos esbugalhados e barbas ralas conduziu o destino de impérios, acabou com economias e selou o resultado de muitos conflitos. Foi instrumento para a popularização do cristianismo, a criação da Grã-Bretanha, o fim na Guerra de Secessão e o desfecho da Revolução do Haiti, entre outros fatos seminais (leia no quadro). “Quanto mais eu avançava na pesquisa, mais ficava claro que a influência do mosquito na história humana desde o início da evolução na África tinha sido minimizada”, disse a VEJA Winegard. “Mas seu valor está muito acima do quanto pesa, na medida em que alterou o jogo várias vezes, mudando a trajetória dos eventos da civilização”.
Como se explica o papel do mosquito na popularização do cristianismo? Nos primórdios, a fé era minoritária e perseguida. Para alcançar o status de religião hegemônica, no entanto, se valeu de seu perfil assistencial e curativo. Como a malária, provocada pelo mosquito Anopheles, era endêmica na Roma antiga e nas suas cercanias, os pântanos pontinos, conhecidos como Campânia, as comunidades cristãs atraíam doentes que acabavam se convertendo. Nas guerras, o bichinho voador foi aliado de estrategistas que conheciam as condições sanitárias dos terrenos em que combatiam. Na Revolução do Haiti (1791-1804), Toussaint Louverture, um dos líderes da independência haitiana, atraiu os colonizadores franceses para áreas costeiras, depois recuou para as colinas e esperou que as febres terçã e amarela matassem os inimigos.
Os exemplos se sucedem, e em alguns aspectos de forma vergonhosa. O tráfico de africanos escravizados, de meados do século XVI a meados do século XIX, só foi viabilizado entre os continentes porque, revelariam estudos de genética, os subjugados seriam mais resistentes a doenças transmitidas por mosquitos — nas Américas, o Brasil foi o país que mais recebeu cativos e que mais tardiamente os alforriou. Havia ainda um outro aspecto: muitos deles já haviam se aclimatado à febre amarela, adquirindo imunidade contra a doença. “Esses genuínos escudos genéticos os salvaram do que devem ter sido taxas cataclísmicas de doenças, mas, em contrapartida, acabaram por alimentar a maior mancha na história humana”, afirma Winegard.
Além da malária e da febre amarela, o mosquito tem culpa no cartório de outras doenças, como a dengue e a zika. As responsáveis pelas picadas são as fêmeas, mas convém absolvê-las em última instância — elas picam porque precisam do sangue para incubar seus ovos e, portanto, se reproduzir, em gesto instintivo e necessário para a preservação da espécie. Afora isso, como polinizadores, são cruciais para a agricultura e a produção de alimentos. Um modo de barrar a proliferação, como já aconteceu no Brasil, é a criação de espécimes estéreis. Funcionou razoavelmente bem, até porque parece não haver modo sensato de erradicá-los.
O trabalho de Winegard, fã de Alexandre, o Grande, ajuda a revelar quão pequenos somos ante seres tão diminutos. Convém, portanto, deixar de lado a lente da arrogância que nos leva a guerras para entender o real papel dos mosquitos. “Parece que somos mestres do nosso próprio destino, o que não é verdade, como nos ensinou a Covid-19”, diz o historiador, apontando para riscos ainda menores, como os vírus. Já notou Mario de Andrade no clássico Macunaíma, ao tratar de outros insetos: “Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são”.
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781
Em uma versão anterior desta reportagem no site e na revista impressa, foi destacada, equivocadamente, a fotografia da cabeça de uma donzelinha azul, uma espécie de libélula. A imagem foi substituída por outra de um mosquito no momento em que pica uma pessoa.