Nos últimos anos, a jornalista americana Tara Roberts dedicou-se a lançar luz sobre um capítulo seminal, embora negligenciado, da história: o tráfico de escravizados entre África e Américas dos séculos XVI a XIX — o que, triste e infelizmente, inclui o Brasil. Integrante da organização não governamental Diving With a Purpose (DWP), formada por mergulhadoras e mergulhadores negros, Tara explora os oceanos em busca de naufrágios dos chamados navios negreiros. Os destroços dessas embarcações são peças fundamentais para a reconstrução das vidas de homens, mulheres e crianças que morreram nas travessias. Ela transformou sua jornada pessoal em um podcast, Into the Depths, que lhe valeu inclusive o respeitado título de Exploradora do Ano, concedido pela National Geographic.
Tudo começou em 2016. Numa visita ao recém-inaugurado Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, em Washington, Tara subiu ao 2º andar, um piso minúsculo e um tanto malcuidado que a maioria das pessoas costuma pular porque é parecido com um arquivo, entre armários e corredores estreitos. Foi quando encontrou a foto de pessoas negras usando trajes de mergulho dentro de um barco. Ela nunca havia visto nada parecido. Apaixonou-se. Descobriu, então, que faziam parte da DWP, cuja missão é vasculhar as profundezas em busca de vestígios das infames embarcações, conhecidas como tumbeiros.
Depois de entrar em contato com a DWP, um dos seus fundadores, Kenneth Stewart, convidou-a para mergulhar. Durante três meses, ela fez um curso e conheceu as pessoas de máscara e cilindro de oxigênio com quem se encantara na foto do museu. Também aprendeu mais sobre o trabalho que faziam ao localizar os naufrágios no fundo do mar, mapeá-los no leito submarino e catalogar os destroços. Largou o emprego para poder acompanhá-los. “Queria fazer algo em torno do movimento racial”, diz a VEJA. “Fiquei deslumbrada, alguém precisava contar a história deles.”
Em várias partes do mundo, Tara e os dublês de arqueólogos submarinos documentaram os restos de navios como o Clotilda, na costa dos Estados Unidos, o São José Paquete d’Africa, na África do Sul, e o Fredericus Quartus e o Christianus Quintus, afundados depois de um motim na Costa Rica. A exploradora relembra da emoção que sentiu ao vasculhar águas costarriquenhas em busca das duas fragatas com nomes de reis dinamarqueses. Ao observar a âncora de uma das embarcações no fundo do mar, sentiu um misto de força e tristeza. “Talvez por saber o que as pessoas experimentaram na travessia”, diz. “Mas percebi que era uma oportunidade para homenagear esses personagens que foram esquecidas ao longo dos séculos.”
Estima-se que 12,5 milhões de africanos foram transportados em 36 000 viagens durante mais de 400 anos, segundo dados colhidos pelo Trans-Atlantic Slave Trade Database, serviço administrado pela Universidade Emory, instituição americana que agrega informações sobre o tráfico transatlântico de cativos. Cerca de 1 000 embarcações foram perdidas no mar nesse período de quatro séculos, o que causou a morte de mais de 1,8 milhão de pessoas. Menos de vinte navios foram encontrados e só uma parte foi estudada com a devida atenção. “O que estamos fazendo é chamar a atenção para uma parte da história que não foi examinada com a amplitude necessária”, afirma Tara.
Nesse retrato trágico, o Brasil tem papel de destaque porque foi o país que mais recebeu cativos e um dos últimos a abolir a escravidão, em postura vergonhosa e que até hoje produz ecos. Entre 1500 e 1869, desembarcaram nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro — os maiores das Américas para esse fim — mais de 5 milhões de africanos. É natural, portanto, que Tara e as equipes da DWP nutram agora especial interesse pelo litoral brasileiro. Não à toa, portanto, o país está na lista de países a ser visitados. Contudo, a exploração só pode ser feita se for autorizada pelas autoridades locais. Seria uma iniciativa louvável, do ponto de vista histórico, e um aceno a uma dívida social que precisa ser paga. Um dos modos é demonstrar respeito pelo passado, homenageando aqueles que morreram em jornadas inaceitáveis, que jamais podem se repetir. Mas é preciso trazê-las à tona.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805