O mito da vida extraterrestre povoa a imaginação humana há quase 2 000 anos. Um dos textos mais antigos sobre o tema foi escrito pelo prosador satírico Luciano de Samósata. Por volta de 161 d.C., ele concebeu sua obra mais conhecida, Uma História Verdadeira, que relata uma fantástica viagem do homem à Lua, que seria habitada por moscas do tamanho de elefantes, pássaros com três cabeças, feras de mil dentes e outros seres extravagantes. Na era moderna, incontáveis autores, cientistas e pesquisadores de diferentes vertentes recorreram ao assunto, sempre para o delírio do público. Na maioria das vezes, os ETs são descritos como criaturas horrendas, quase sempre de cabeça imensa e antenas, além de possuírem invejável inteligência. No último dia 14, surgiu enfim uma das evidências mais sólidas sobre a vida em outros planetas. Sob diversos aspectos, a descoberta é extraordinária, mas ela pode significar uma decepção para os sonhadores: em vez de monstros horripilantes, nosso vizinho espacial deve ser um minúsculo micróbio.
A novidade: um pool de cientistas de diversos países publicou na revista científica Nature Astronomy um estudo que relata a descoberta de um gás na atmosfera de Vênus. A substância, chamada fosfina, existe também na Terra. Eis o pulo do gato: em ambiente terráqueo, a fosfina costuma ser produzida principalmente por micróbios. Portanto, se o gás venusiano tiver as mesmas origens, é possível conceber a ideia da existência de microrganismos vivos nas nuvens do planeta vizinho. No artigo, os especialistas afirmam que a quantidade de fosfina encontrada é 10 000 vezes maior do que seria possível se tivesse sido formada por processos não orgânicos, levando-os a sugerir a explicação biológica — ou seja, a vida como a conhecemos. Nunca a ciência esteve tão perto de encontrar ETs.
O achado provocou certo alvoroço na comunidade científica. “É a primeira alegação de assinatura biológica, isto é, de sinais do metabolismo de organismos vivos, que temos a respeito da atmosfera de outro planeta”, explica Fabio Rodrigues, professor de química da Universidade de São Paulo e especialista no assunto. “Isso já é um grande avanço por si só.” O estudo é resultado de anos de trabalho. Os pesquisadores vinham procurando por fosfina, considerada um possível indicador de atividade biológica extraterrena, desde 2016. A equipe se baseou principalmente em observações da superfície de Vênus. Para isso, utilizou dois telescópios, localizados no Havaí e no Chile, e reuniu as informações coletadas durante quatro anos para chegar à surpreendente conclusão. Uma das coautoras do estudo é a portuguesa Clara Sousa-Silva, de 33 anos, pesquisadora do MIT, instituto tecnológico de ponta dos Estados Unidos. Clara é tão obcecada pelo tema que seu apelido entre os pares cientistas é “doutora fosfina”.
A descoberta do gás na atmosfera venusiana é relevante porque, de forma geral, o planeta é considerado hostil à vida. Na sua superfície, a temperatura ultrapassa os 400 graus, as nuvens que o encobrem permanentemente são ácidas e a pressão atmosférica é noventa vezes maior do que a encontrada na Terra, no nível do mar. Diante disso, como seria possível haver vida por lá? A resposta pode estar no próprio Planeta Azul. Por aqui, já foram encontrados microrganismos capazes de viver em ambientes predominantemente ácidos, em grandes altitudes e até em profundidades abissais. Talvez, imaginam os pesquisadores, não seja diferente em Vênus.
Como não poderia deixar de ser, a descoberta suscitou um amplo debate a respeito da possibilidade de vida fora da Terra. Há uma corrente cada vez mais robusta de cientistas para a qual é possível, para não dizer provável, a existência de seres alienígenas. Nesse aspecto, devem-se tomar alguns cuidados. Por si só a palavra “alienígena” desperta suposições fantasiosas (os seres inteligentes de cabeça grande e assustadora), mas a realidade talvez seja outra, como revelou a pesquisa a respeito de Vênus. Além disso, o universo é grande demais para que se cravem certezas. De todo modo, o desenvolvimento tecnológico, que permitiu novas técnicas de investigação por meio de telescópios ultrapotentes ou até mesmo novas viagens espaciais, certamente trará em breve novas respostas para a humanidade. As possibilidades, afinal, são infinitas. A areia que recobre Marte, as crateras da Lua, os anéis de Saturno, tudo isso poderia estar vivo, mas de uma forma que ainda — ainda — não compreendemos.
A maioria dos astrônomos parece convergir para a ideia de que a vida alienígena seria, de uma forma ou de outra, parecida com os seres terráqueos — os micróbios venusianos estão aí para comprovar a teoria. Segundo a Nasa, a agência espacial americana que liderou a maioria das expedições para o infinito e além, as leis da química e da biologia aparentam ser universais. Nos últimos anos, a Nasa buscou por oxigênio, carbono e água fora da Terra e focou seus esforços em Marte e Europa, uma das luas de Júpiter. De acordo com os pesquisadores, o Planeta Vermelho pode ter sido habitável em um passado longínquo, uma vez que existem indícios de que havia fluxos d’água e até mesmo ocorrência de efeito estufa em sua superfície. Na lua Europa, a descoberta de grandes oceanos de água líquida debaixo do gelo superficial é o que motiva a nova geração de astrônomos a buscar vida por lá.
Embora Vênus nunca tenha sido o foco dos interesses astrobiológicos dos pesquisadores, não faltam estudos que apontam para a possibilidade de o planeta abrigar algum tipo de ser vivo. Um dos maiores defensores da hipótese foi o famoso astrônomo, escritor e divulgador científico Carl Sagan. Em 1967, o americano brincou com a ideia de haver vida nas nuvens venusianas em artigo publicado na revista científica Nature. Ainda assim, o interesse por Vênus não foi páreo para a preferência da maioria dos especialistas por Marte, o planeta favorito também dos escritores de ficção científica e diretores de cinema (veja o quadro), que ajudaram a construir as imagens estereotipadas das criaturas extraterrestres.
Ao que tudo indica, o começo da exploração de Vênus será feito por empresas privadas, que conseguiriam organizar projetos de forma mais ágil e menos burocrática do que agências como a Nasa. A Rocket Lab, companhia americana do segmento aeroespacial, confirmou o interesse em voar para o planeta vizinho. Há aproximadamente um mês, a empresa informou que pretende mandar um foguete para Vênus até 2023. “Enviar missões a Vênus será o próximo passo da exploração espacial”, disse a VEJA o astrofísico da Harvard Avi Loeb. “A única forma de afirmar definitivamente se há vida por lá é enviar uma sonda que colete amostras de suas nuvens e busque micróbios nelas.” Para Loeb, a descoberta da molécula de fosfina em Vênus poderia equivaler ao Santo Graal da astrobiologia.
Nem todos os cientistas estão tão otimistas. Nathalie Cabrol, astrobióloga do SETI Institute, organização americana fundada por Carl Sagan e especializada na busca por inteligência extraterrestre, diz que é preciso reduzir as expectativas. “Devemos lembrar que, tipicamente, a atmosfera não é um ambiente onde a vida surgiria ou se manteria”, disse a VEJA. Segundo ela, a possibilidade de a ciência chegar a alguma conclusão palpável é pequena. “Neste momento, é importante ter cuidado. A hipótese de vida em Vênus, por ora, me parece bastante improvável.”
É inegável que o estudo sobre as nuvens de Vênus representa, no mínimo, uma nova chance para os cientistas desvendarem os enigmas de outro planeta. Se houver a prova definitiva de vida extraterrestre, melhor ainda. Bem ou mal, significará que os humanos não estão sozinhos no universo. Obviamente, ter um micróbio como vizinho interplanetário pode não ser excitante para a maioria das pessoas, mas tudo leva a crer que isso é apenas o começo. Como será no futuro, com o avanço tecnológico? Por enquanto, não há resposta para essa pergunta. O genial Carl Sagan, que não viveu o suficiente para se deleitar com as incríveis descobertas da ciência espacial, definiu com ironia o que significaria estar só. “Se não existe vida fora da Terra, então o universo é um grande desperdício de espaço.” Os microrganismos de Vênus, se de fato existirem, encheriam Sagan de orgulho.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705