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De quase vaqueiro a primeiro brasileiro a ganhar o “Oscar da Paleontologia”

Em entrevista a VEJA, Álamo Saraiva reflete sobre a carreira e o pioneirismo ao receber o Morris F. Skinner, um dos prêmios mais prestigiosos da área

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 out 2024, 16h29 - Publicado em 17 out 2024, 18h07
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  • Antônio Álamo Feitosa Saraiva se tornou o primeiro brasileiro a receber o prestigiado prêmio Morris F. Skinner, considerado o “Oscar da Paleontologia”. Sua pesquisa se concentra na Bacia do Araripe, uma região no Cariri cearense internacionalmente conhecida pela diversidade única de fósseis que abrange desde insetos e plantas até raros dinossauros, como o pterossauro Tapejara navigans, único exemplar inteiro do mundo.

    Para além das contribuições científicas, Álamo, como é conhecido, ganhou notoriedade pela luta contra o tráfico internacional de fósseis. Em Santana do Cariri, ele foi fundamental na criação do Museu Plácido Cidade Nuvens, um divisor de águas na conscientização da população sobre a importância da preservação do patrimônio científico. Apesar do extenso histórico de realizações, a condecoração da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados pegou de surpresa o pesquisador (que por pouco não virou vaqueiro).

    Conversamos com Álamo sobre essa nova conquista, as perspectivas para a pesquisa paleontológica no Brasil e os desafios que as futuras gerações de paleontólogos enfrentarão — profissionais que ele espera formar com entusiasmo. “ Espero que, com esse prêmio, as crianças daqui, das cidades ao redor da Chapada do Araripe, vejam que ser cientista não é algo distante”, defende. 

    O senhor sempre quis ser paleontólogo?

    Na verdade, eu nem sabia que isso era uma possibilidade. Meu pai tinha uma vacaria, ele criava gado de leite. E, até os 14 anos, eu tinha certeza de que queria ser vaqueiro. Só que, depois, descobri que a vida de vaqueiro não era tão fácil e glamourosa quanto eu imaginava, além de se ganhar muito pouco. Esse último ponto eu não resolvi muito bem, porque acabei me tornando professor (risos). Mas, desde criança, eu gostava muito da natureza. Eu criava peixes, observava os animais, as plantas, colhia insetos, colecionava conchas… Então, comecei a pensar que talvez eu fosse dar um bom veterinário. Mas aí percebi que também não era o que eu queria, porque, muitas vezes, o veterinário cuidava dos animais para depois abater. E meu sonho era salvar todos os bichos, um sonho bem prático (risos). Aí me restou a biologia, e eu entrei na faculdade achando que seria botânico. Mas foi aí que o professor Plácido Cidade Nuvens me apresentou aos fósseis, e, quando percebi, já era paleontólogo. Nem senti quando começou, mas, que bom que começou, porque hoje eu não poderia ser mais realizado.

    VEJA MAIS: Caçadores do passado: o momento de ouro das escavações e investigações no Brasil

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    O senhor já esperava ser premiado com o Morris F. Skinner? Como foi receber essa notícia?

    Sinceramente, nunca, nem nos meus sonhos mais ousados, eu imaginei que receberia o Morris F. Skinner. Esse é um prêmio muito prestigiado para qualquer paleontólogo. Geralmente, ele é conferido a norte-americanos e europeus. Alguns japoneses e indianos já foram premiados, mas nunca um brasileiro. Eu jamais pensei que seria o primeiro. Para mim, receber esse prêmio foi uma alegria imensa. Não só por ser o primeiro brasileiro a conquistá-lo, mas por colocar em destaque a URCA [Universidade Regional do Cariri], que é a menor universidade estadual do Ceará, e também por dar visibilidade a esse território no coração do Nordeste, cercado pela caatinga. Para mim, é uma honra ver esse lugar reconhecido e valorizado. Espero que, com esse prêmio, as crianças daqui, das cidades ao redor da Chapada do Araripe, vejam que ser cientista não é algo distante ou inacessível. Se eu consegui, qualquer um, se quiser, também pode.

    O senhor acha que estamos vivendo uma espécie de “era de ouro” da arqueologia e paleontologia no Brasil?

    Sim, principalmente aqui no Nordeste. Há 20, 30 anos, a produção científica aqui era mínima, quase nada, e o que existia era feito por estrangeiros. Mas nós fizemos o dever de casa. Embora ainda faltem paleontólogos e arqueólogos para dar conta do que temos, há muita vontade de fazer acontecer. Quando há aporte financeiro, essencial para pesquisa de campo, que é fundamental nessas áreas, as descobertas acontecem. Apesar das dificuldades, estamos conseguindo tirar leite de pedra. Mas seria ótimo se as autoridades olhassem mais para essas ciências, porque a arqueologia e a paleontologia fazem uma propaganda incrível da carreira científica para as próximas gerações, e só olhar a quantidade de dinossauros de brinquedo vendidos e quantas crianças podem desejar se tornar cientistas pelo contato com essas ciências. É um excelente outdoor.

    E como o Brasil se posiciona no contexto mundial em termos de fósseis? Temos um bom território para as pesquisas na área? 

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    Toda a América do Sul é riquíssima em fósseis. O continente, como um todo, passou por poucas alterações geológicas, poucos dobramentos ou grandes eventos tectônicos, o que favoreceu a preservação. Isso nos coloca em uma posição privilegiada. Se olharmos para regiões como a Bacia do Araripe, ela compete com os melhores sítios fossilíferos do mundo. A preservação dos fósseis é excepcional, e a diversidade é impressionante. Temos fósseis de peixes, insetos, dinossauros, plantas em excelente estado de conservação. É uma região onde, literalmente, em cada escavação você encontra algo novo. Sempre dizemos que aqui, em cada enxadada, sai uma minhoca (risos). É impossível fazer um trabalho de campo na Bacia do Araripe sem encontrar um fóssil. Então, sim, o Brasil tem um acervo fossilífero de extrema importância, e isso nos coloca ao lado de regiões como a China e a Alemanha, que também são grandes pólos de preservação.

    Nós estamos formando novas gerações de paleontólogos e arqueólogos. Quais são os desafios na formação desses novos profissionais?

    Algo que a maioria das pessoas não sabem é que no Brasil não temos nenhum curso de graduação nem de pós-graduação específico em paleontologia. Eu, por exemplo, sou biólogo de formação, mas fiz meu doutorado em oceanografia, estudando ingressões marinhas na Chapada do Araripe, mas meu “mar” tinha de 110 a 115 milhões de anos. A paleontologia vive nessa interseção entre a biologia e a geologia. Então, a formação acaba sendo híbrida, se infiltrando em áreas que não são propriamente a paleontologia.

    E o senhor acha que vale a pena criar cursos de paleontologia?

    Eu não sou a favor de criar um curso de graduação em paleontologia. Mas sou a favor de criar especializações em nível de mestrado e doutorado. Há muitas universidades interessadas em criar o primeiro curso de pós em paleontologia no Brasil. Aqui na URCA, já enviamos essa proposta algumas vezes, mas ainda não foi aprovada. O que me dá esperança é que já temos oito professores paleontólogos efetivos, e o número mágico para criar a especialização costuma ser nove. Estamos muito próximos disso. Agora, se olharmos para o restante do Brasil, em muitas universidades há, quando muito, um ou dois paleontólogos. Mesmo assim, os que estão trabalhando nesse campo têm feito um trabalho excelente, fortalecendo parcerias com instituições estrangeiras, o que tem dado um bom aporte para as nossas pesquisas. Então, apesar das dificuldades, o campo está avançando.

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    O senhor falou das parcerias internacionais, e muito se fala sobre o chamado “colonialismo científico”. Como o senhor vê essa questão?

    Olha, ao longo dos anos, nós provamos que temos pesquisas de alta qualidade. Mas eu lembro bem da minha primeira escavação, há mais de 20 anos. Eu fiz a pesquisa, escrevi o trabalho e mandei para três revistas europeias que botaram inúmeros defeitos no artigo. Então, conversando com um pesquisador francês, ele me sugeriu colocar o nome dele como primeiro autor. Em alguns trabalhos, eu cedi a primeira autoria para pesquisadores europeus, porque isso facilitava o trânsito das nossas pesquisas nas grandes publicações científicas. No caso deste trabalho, após essa mudança de autoria, ele foi aceito sem grandes modificações. Ou seja, há uns 20 anos, tínhamos sim esse problema de divulgação e aceitação da nossa produção.  Eu lembro de casos em que pesquisadores ingleses, incluindo um que hoje nem pode mais entrar no Brasil por ser reconhecidamente um traficante internacional de fósseis, criticavam nossos trabalhos, alegando que não havia paleontólogos capacitados no Brasil. Eles queriam, de certa forma, tomar para si a responsabilidade de estudar os fósseis maravilhosos que temos aqui, com o argumento de que o Brasil não tinha capacidade científica para isso. Mas acredito que este comportamento ficou no passado. Hoje em dia,temos brasileiros indo para a China, para os Estados Unidos e para a Europa. Eu mesmo já fui a todos esses lugares, até à Rússia, para ver fósseis. E somos tratados com respeito e reconhecimento. Conquistamos um espaço significativo. O Brasil está presente nas grandes publicações científicas, e o discurso de que não temos pesquisa qualificada para lidar com nossos fósseis é cada vez mais ultrapassado. Mas esse tipo de visão tem um fundo político, que se repete em vários setores, não apenas na paleontologia.

    O que o senhor sente nesse momento da sua carreira, sendo reconhecido internacionalmente por uma vida dedicada à pesquisa brasileira? 

    Eu divido todas as minhas conquistas com todos que estiveram no campo comigo, porque a paleontologia é uma ciência construída coletivamente. Então, essa comenda não é só minha, é uma celebração das conquistas coletivas do grupo que eu faço parte. Mas, olhando para minha trajetória, eu tive muitas brigas, brigas homéricas mesmo. Acompanhei disputas que envolveram a Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal. Teve momentos em que eu me perguntava se deveria estar nessas frentes, porque foram muitas dificuldades. Mas esse prêmio vem para me dizer que tudo valeu a pena e que eu estava do lado certo. Toda essa luta foi válida, e isso é algo que guardo dentro de mim, algo que me dá força. Aos 63 anos, já não tenho o mesmo ânimo que tinha antes, mas esse prêmio me deu um novo gás para continuar lutando pela ciência brasileira. E eu espero que ele abra caminhos para que eu possa continuar a fazer, ainda melhor, aquilo a que dediquei boa parte da minha vida.

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