Entre os séculos XIV e XVI, os purépechas dominaram o oeste do México, com uma população estimada em mais de 1 milhão de pessoas. Em um cenário repleto de reinos pré-hispânicos notáveis, eles estabeleceram um império poderoso e se destacaram como um dos poucos povos que resistiram ao domínio asteca. Embora sua cultura persista até hoje, esse legado enfrenta uma ameaça devastadora.
Na noite de 29 de julho, uma pirâmide de Ihuatzio, no estado de Michoacán, sofreu um desabamento parcial devido às chuvas intensas. A estrutura, com cerca de 1 100 anos, era um dos monumentos mais bem preservados daquela civilização. No interior do edifício, os danos foram ainda mais graves, afetando o núcleo e os muros de contenção, comprometendo seriamente a integridade da construção.
O Instituto Nacional de Antropologia e História do México atribuiu o desastre às altas temperaturas registradas na área e à consequente seca, que provocaram fissuras e permitiram infiltrações de água. “Para nossos ancestrais, os construtores, isso era um mau presságio que indicava a proximidade de um evento importante”, escreveu Tariakuri Álvarez, descendente dos purépechas, em sua conta no Facebook. “Antes da chegada dos conquistadores, algo semelhante aconteceu.”
O mau agouro não se restringe aos monumentos da civilização mexicana. Poucos dias depois do colapso da pirâmide, o Arco Duplo, uma imponente formação geológica que atrai milhares de turistas ao Parque Nacional Glen Canyon, nos Estados Unidos, também foi ao chão. A estrutura, com mais de 190 milhões de anos, não suportou as variações dos níveis de água e erosão provocada pelas ondas do Lago Powell.
O fator comum entre os dois casos são as condições ambientais extremas, que estão se tornando um sério problema para patrimônios arqueológicos de relevo para a humanidade. A Unesco, que é responsável por proteger mais de 1 200 áreas do Patrimônio Mundial em 168 países, estima que um terço dos sítios naturais e um em cada seis sítios culturais estão sofrendo de algum modo com os impactos das mudanças climáticas.
Os perigos afetam lugares tão diversos quanto as pinturas rupestres mais antigas do mundo, registradas na Ásia, que estão se deteriorando devido à erosão acelerada pelas variações climáticas, ou a Grande Barreira de Corais da Austrália, ameaçada pelo aquecimento das águas oceânicas. Na Argélia, as ruínas de Tipasa estão na corda bamba, ameaçadas. E até mesmo Veneza pode deixar de existir. Com o Mar Adriático subindo alguns milímetros ao ano, prevê-se que inundações graves que aconteciam a cada 100 anos ocorrerão a cada seis anos até 2050, e a cada cinco meses até 2100.
Há preocupação. “É difícil dizer que exista algum bem totalmente seguro”, diz Silvia Zanirato, professora do curso de gestão ambiental da USP. “Em geral, os patrimônios que se encontram nos países que mais sofrerão efeitos da variabilidade climática e que também têm maiores dificuldades de conservação serão os que terão maior propensão a perdas.”
Um levantamento recente sugere que os sítios da América Latina têm 16% a mais de chance de enfrentar ameaças severas do que aqueles na Europa e América do Norte. No Brasil, os lugares considerados Patrimônio Mundial da Humanidade que se encontram na região costeira, como os centros históricos de Olinda, de Salvador, de São Luís do Maranhão, de Paraty e o Sítio Arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, já sofreram com a invasão das águas do mar.
Há solução? Sim. A Unesco desenvolve uma série de diretrizes sobre ação climática, com a apresentação de estudos para adaptações que podem ajudar a deixar os patrimônios mais resilientes. “Embora possa parecer uma questão secundária, não é”, lembra Luana Campos, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. “Esses lugares dizem respeito à identidade dos povos e a tudo que a humanidade construiu.” Se o presente tem um longo passado, torça-se para que o legado sobreviva para as próximas gerações. Não se trata de supor o apocalipse, mas de pedir atenção.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909