Logo depois que a pandemia de Covid-19 atingiu a China, no fim de 2019, o governo de Pequim suspendeu as exportações de primatas usados em experiências de laboratório. Uma das preocupações das autoridades sanitárias era que o vírus pudesse se espalhar ainda mais pelo mundo ao usar os animais como veículo. Três anos mais tarde, a proibição persiste — e, como não poderia deixar de ser, seus efeitos são devastadores, principalmente em países como Estados Unidos e outros na União Europeia, líderes em pesquisas científicas.
Estima-se que 115 milhões de animais sejam utilizados em experimentos de laboratório todos os anos no mundo, de acordo com a organização não governamental Humane Society International. Antes da pandemia, a China contabilizava de 12 a 13 milhões de bichos para estudos e exportava 40 000 primatas. Só no ano passado, dos 240 000 macacos criados para tal fim no país, apenas 30 000 atingiram os critérios ideais para aplicação de testes. O problema se aprofundou porque os cientistas chineses consumiram quase todos em suas instalações. O mercado global ficou então desequilibrado e assim deu-se a disparada dos preços: um espécime desse tipo, que valia cerca de 2 000 dólares em 2017, pode atingir hoje em dia a cotação de 20 000 dólares.
Apesar dos protestos de entidades que defendem os direitos dos animais, os cientistas argumentam que não há como substituí-los nos testes, em razão de sua semelhança fisiológica e genética com os humanos. Portanto, aplicar fármacos e vacinas nos macacos e outros bichos antes que os produtos sejam lançados comercialmente é uma necessidade que não será eliminada. Por mais que as novas tecnologias avancem, dificilmente as máquinas, pelo menos nas próximas gerações, serão capazes de ocupar o lugar de seres orgânicos. A FDA, a agência americana reguladora da área de saúde, atesta que os animais “servem como modelos críticos para muitas áreas de pesquisa”. Para as autoridades britânicas, o “uso de primatas nascidos em cativeiro e familiarizados com a interação humana pode reduzir o sofrimento dos animais”.
As atuais restrições levaram o governo dos Estados Unidos a ampliar os investimentos para criar primatas em instalações domésticas. No prazo de dois anos, foram desembolsados 29 milhões de dólares em Centros Nacionais de Pesquisa de Primatas. Em setembro, o presidente Joe Biden assinou uma ordem com o objetivo de reduzir a dependência da China. “Atualmente, não há primatas suficientes para apoiar a pesquisa pandêmica e demais estudos do Instituto Nacional de Saúde para os quais os animais são necessários”, justificou a Casa Branca.
No Brasil, deve-se ao sanitarista e deputado federal Sérgio Arouca (1941-2003) a Lei 11 794, de 2008, que regulamenta o uso de animais no ensino e na pesquisa. De acordo com ela, a criação e a utilização de espécimes para essas atividades devem ser licenciadas pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Por sua vez, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal é o órgão responsável por formular e fiscalizar normas para o uso humanitário dos bichos. É um conjunto de regras avançado até para os padrões de nações desenvolvidas. Ainda assim, sofre críticas por não ser aplicado de forma efetiva.
Um consenso, porém, une pesquisadores e ativistas: em um cenário ideal, nenhum animal deveria ser empregado com essa finalidade, mas tal dimensão está longe de ser alcançada. Sim, as cobaias continuarão a ser usadas pela ciência, mas jamais deveriam passar por qualquer tipo de sofrimento. Fica o alerta, enquanto o mundo lida com a inédita crise de escassez de animais essenciais para as pesquisas.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819