O neurocirurgião americano Henry Marsh, autor de um best-seller sobre sua atividade, Não Faças Mal, de 2014, costuma descrever a sala de um centro cirúrgico como um “teatro”. Foi nesse teatro que a alemã Dagmar Turner, de 53 anos, executou ao violino trechos de canções clássicas de George Gershwin, da Sinfonia Nº 5 de Gustav Mahler e alguma coisa do repertório de Julio Iglesias, porque ninguém é de ferro. O espetáculo durou três horas. O detalhe: Dagmar estava sendo submetida a uma intervenção cerebral com o crânio aberto no hospital King’s College, em Londres. O vídeo viralizou nas redes sociais — com o perdão pelo uso de uma expressão um tanto indelicada em tempos de coronavírus.
O recurso, impressionante aos olhos de leigos, tem sido empregado cada vez com mais frequência, uma pequena revolução dentro de uma das áreas que mais avançam na medicina. Diz o neurocirurgião João Vitorino, da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia: “A tendência é operar todos os tumores cerebrais com a pessoa acordada”.
Essa modalidade de procedimento começou a ser usada, há pelo menos três décadas, de modo muito esparso, com risco, em vítimas de epilepsia — os médicos mantinham os pacientes alertas o suficiente para garantir que estavam destruindo os trechos de tecido cerebral que provocavam convulsões descontroladas. Deu-se o salto, agora, com um par de aperfeiçoamentos espetaculares: (1) a introdução da tecnologia de mapeamento cerebral, que permite a criação de uma réplica digital precisa da cartografia da massa cinzenta; e (2) o desenvolvimento de anestésicos altamente sofisticados, afeitos a deixar os profissionais de bisturi nas mãos plenamente confiantes em manter lúcidos os pacientes enquanto os operam.
A vigília é fundamental porque, dados os conhecimentos cada vez mais amplos sobre o funcionamento do cérebro, que o escritor Bill Bryson chama de “a coisa mais extraordinária do universo” (veja o quadro ao lado), é imperativo acompanhar a atividade neurológica permanentemente, como se os especialistas fossem o maestro de uma sinfonia executada por um órgão com mais de 100 bilhões de neurônios, que formam 100 trilhões de conexões. “O encéfalo aberto permite verificar, em tempo real, a resposta de quem está sendo operado e é sinônimo de redução de danos neurológicos”, diz o neurocirurgião Eduardo Carvalhal Ribas, do Hospital Albert Einstein. Em pacientes com Parkinson, por exemplo, o médico precisa implantar um eletrodo no lugar exato do cérebro que causa os tremores. A única forma de saber se o implante está no local correto, e se houve sucesso, é verificar se o paciente parou de tremer. E isso só pode ser feito com atenção máxima. Já no zelo com tumores, como no caso de Dagmar, há controle absoluto de funções essenciais e delicadas, como a de emitir notas musicais das cordas de um instrumento. A resposta é simples e rápida: se o eletrodo atingir uma região associada a essa função, imediatamente o paciente parará de tocar ou errará. Dessa forma, o médico sabe que não deve remover determinado ponto para manter uma habilidade tão específica. “Além da redução do risco de sequelas graves, os benefícios desse tipo de cirurgia incluem melhores resultados no tratamento, período menor de internação e recuperação mais rápida”, diz o neurocirurgião Guilherme Carvalhal Ribas, do Hospital Albert Einstein. Em tempo: sem dor, porque na carcaça do edifício cerebral não há terminações nervosas.
Anteriormente, a prioridade era retirar o máximo de tumor, preservando os movimentos básicos do paciente, mas não todos. “Hoje, sabemos que não basta o tratamento ser eficaz do ponto de vista oncológico”, diz o neurocirurgião pediátrico Carlos Roberto de Almeida Junior, do Hospital de Amor, em Barretos, São Paulo. “A retomada da vida normal é algo mais do que desejado.” Em adultos, sem dúvida, mas sobretudo entre crianças.
Existia uma certa relutância da classe médica em operar meninas e meninos atentos e ligados em tudo o que se passa debaixo do feixe de luz — há, ainda, um cuidado especial com pré-adolescentes e crianças. “Além de o cérebro infantil estar em constante evolução, a reação e a cooperação da criança ao acordar durante a cirurgia são extremamente imprevisíveis”, diz o neurocirurgião Carlo Petitto, do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo. Por isso, em geral, a idade mínima para realizar uma cirurgia cerebral com o paciente acordado é 13 anos, fase em que já há mais maturidade, tanto comportamental quanto da própria plasticidade cerebral. Não se trata, contudo, de uma regra. Existem relatos de crianças de apenas 7 anos que passaram com sucesso por uma cirurgia de olhos bem abertos. “Decidi fazer a cirurgia acordado porque o médico disse que seria mais seguro. Tive medo, mas o doutor foi me falando o que estava acontecendo e fiquei tranquilo”, lembra Pedro Henryque Arandas, de 13 anos, que foi submetido, em fevereiro, a uma operação no Sabará, para tratar uma epilepsia de difícil controle. O depoimento de Pedro Henrique, lindamente sincero, é o mais bem-acabado retrato dos cuidados com uma máquina composta de 75% a 80% de água, além de gordura e proteína, que, em 1 único centímetro cúbico de tecido cerebral, tem tantas conexões quanto estrelas na Via Láctea. Por tudo isso, é melhor sonhar acordado.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678