Entre todas as quarentenas decretadas para conter a Covid-19, nenhuma foi tão rigorosa quanto a dos 124 tripulantes a bordo do quebra-gelo Polarstern, ou Estrela Polar, navio de pesquisas do instituto alemão Alfred Wegener. O grupo embarcou em fevereiro na viagem em direção ao tenebroso inverno glacial do Polo Norte, onde as temperaturas baixam a 50 graus negativos e a escuridão dura 180 dias por ano. A ideia era outra equipe render esse grupo em abril, mas, com voos cancelados e portos fechados, a turma seguiu a bordo — só veio a desembarcar em 17 de junho, na remota ilha norueguesa de Svalbard. Apesar da dureza da jornada, ninguém pensou em desistir da missão histórica que envolve o projeto Mosaic, um painel de 600 cientistas de vinte nacionalidades empenhados na mais ambiciosa expedição já feita ao encontro dos segredos do Círculo Polar Ártico. Iniciada em setembro de 2019 e prevista para acabar em outubro, após percorrer 2 500 quilômetros, a viagem do navio Polarstern vem revelando de forma inédita os impactos do aquecimento global sobre o gelo, a atmosfera e a vida marinha desse ponto do planeta tão imenso quanto misterioso.
Ao contrário da Antártica, um continente de fato, o Ártico é um oceano coberto por gelo marinho, característica que torna complexa sua exploração. Enquanto o continente gelado ao Sul aloja 4 000 pesquisadores em 75 bases permanentes, o instável gelo do Norte não permite qualquer construção, o que faz do Oceano Ártico, abaixo da calota, um dos pontos mais remotos do planeta. Por ter características tão complexas, quase tudo que se sabe de lá é informação obtida por satélites. O mapeamento espacial acompanhou, por exemplo, o encolhimento de 30% da calota polar desde 1979, comprovação inequívoca dos malefícios do efeito estufa. Agora, acionando um radar de 170 quilos transportado até o local, a equipe do Polarstern detectou que a espessura do gelo ártico está ainda mais fina do que se estimava. Só a observação in loco permite saber isso, já que a quantidade de camadas de neve, a salinidade e a temperatura interferem na penetração dos raios laser responsáveis pela medição por satélite.
Os cientistas também constataram que não só a espessura, mas a própria estrutura da calota vem sofrendo alterações: o gelo está se movimentando com maior vigor e apresenta número crescente de rachaduras. Mais preocupante ainda é a extensão cada vez mais reduzida das múltiplas camadas de neve que se acumulam desde que o mundo é mundo nos trechos próximos ao polo. A velocidade das mudanças aponta para o completo colapso da calota em futuro não muito distante. “Sem a capa de neve para refletir o sol, o oceano passa a absorver calor, acelerando o aquecimento global”, diz Julienne Stroeve, da Universidade de Manitoba, responsável pela descoberta. “É provável que isso aconteça antes de 2050”, afirma.
O impacto do fenômeno é tão potente que interfere até no início das estações — o verão ártico agora começa antes e dura mais. Como o frágil ecossistema da região é todo interligado, as alterações têm efeitos em cadeia. O oceanógrafo Jeff Bowman, do Scripps Institution, de San Diego, observou que o encolhimento da calota faz com que a luz solar alcance a superfície da água com mais intensidade, o que acelera a reprodução de fitoplânctons, microalgas que formam a base da cadeia alimentar local. Em vez de alcançarem seu auge em julho, as algas estão se espalhando em grande escala já em abril, o que pode desestabilizar a alimentação dos ursos polares. “Fitoplânctons também são responsáveis por absorver boa parte do carbono da atmosfera. Seu desequilíbrio vai alterar esse mecanismo”, alerta Bowman.
Foi só no século XIX que desbravadores, sobretudo britânicos, começaram a buscar uma rota ao Norte que conectasse o Atlântico ao Pacífico e facilitasse o comércio entre o Ocidente e a Ásia. Em 1845, uma expedição liderada por John Franklin tentou mapear a traiçoeira Passagem do Noroeste, via marítima que faz a ligação do Estreito de Davis, do lado atlântico, com o de Bering, no Pacífico. Sem tecnologia para vencer as intempéries, o navio afundou próximo a Nunavut, no Canadá. A viagem mais bem-sucedida foi a do norueguês Fridtjof Nansen, o primeiro a se aproximar do Polo Norte, alinhando descobertas que têm impacto até hoje. O Polarstern, com toda a sua carga de equipamentos ultramodernos, seguiu a mesma e poderosa corrente oceânica, a Transpolar, localizada por Nansen e responsável por impulsionar sua embarcação, em velocidade de 7 quilômetros por hora, até onde ninguém havia ido. Nessa trajetória, em 24 de fevereiro o navio de pesquisa alemão ficou a menos de 200 quilômetros — precisamente 156 — do Polo Norte, em pleno inverno. Um feito inédito, entre muitos que o projeto Mosaic espera conquistar.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694