A 400 quilômetros de altitude, bem abaixo dos satélites de comunicação, uma estrutura de 420 toneladas e quase 110 metros de comprimento — equivalente a um campo de futebol — viaja a 28 000 quilômetros por hora, dando uma volta no planeta a cada noventa minutos, totalizando dezesseis órbitas por dia. Na sua área externa, painéis solares geram energia capaz de iluminar quarenta casas. Maravilha tecnológica do crepúsculo do século XX, a Estação Espacial Internacional (conhecida pela sigla em inglês ISS) está fazendo vinte anos. Parece pouco, mas, em termos de operações aeroespaciais, duas décadas fazem dela uma velha senhora.
A ISS não é chamada de internacional futilmente. Ainda que capitaneada pelos protagonistas da corrida espacial, ela é fruto de uma colaboração multinacional que vai além de Estados Unidos e Rússia. Entre estadas de curta e longa duração, 241 pessoas, de dezenove países, já estiveram a bordo dela, entre elas o brasileiro Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações. E o número de visitantes continua crescendo, particularmente agora com a chegada da missão da SpaceX, que partiu da Flórida na noite de domingo 15, levando quatro tripulantes, incluindo um que nunca esteve lá.
Os astronautas não viajam a passeio: são treinados para conduzir experimentos que impulsionam o conhecimento. Segundo a Nasa, desde 2000 foram realizados quase 3 000 estudos científicos. Um dos mais impressionantes é a reprodução de órgãos humanos em impressoras 3D. Quando fabricado na Terra, o coração, por exemplo, tem sua estrutura reforçada para não entrar em colapso sob o peso da gravidade — problema que deixa de existir fora da atmosfera, reproduzindo-se assim um exemplar fiel ao original. Outro experimento revelador foi o de testes de sobrevivência da bactéria Deinococcus radiodurans, encontrada em carne enlatada. Ela resistiu ao frio e à radiação ultravioleta cósmica pelo extraordinário período de um ano no expositor da estação. O que se depreende, portanto, é que a ISS é um laboratório no qual se pode testar o que outrora era impensável, inclusive a força de microrganismos.
Quando foi lançada, entretanto, a estação não era um conceito inédito. Tanto os EUA quanto a extinta União Soviética tiveram seus respectivos laboratórios orbitais: o Skylab, de 1973, e a Mir, de 1986, ambos posteriormente desativados. Ainda que tivesse havido cooperação entre as duas nações naquele período, porém, nada pode ser comparado à construção conjunta da ISS. Foram necessários 42 voos em dois anos para levar os módulos a ser montados no espaço. Além dos postos de trabalho, ela é equipada com seis dormitórios, dois banheiros e academia de ginástica.
Seus três primeiros hóspedes (dois russos e um americano) pisaram na estação em 2 de novembro de 2000, levados em uma nave Soyuz lançada do Cazaquistão, dois dias antes, em 31 de outubro — o que acabou provocando piada: um voo no Dia das Bruxas seguido de uma chegada no Dia dos Mortos. Como astronautas não são supersticiosos, tudo correu bem, ainda que não sem contratempos. Em um evento virtual realizado em comemoração aos vinte anos de inauguração, o cosmonauta Yuri Gidzenko relatou que precisou de cinco minutos para abrir a escotilha, e só conseguiu com a força do colega Sergei Krikalev. Por um instante que pareceu uma eternidade, eles tiveram a impressão de que ficariam para sempre do lado de fora.
Vinte anos depois da primeira expedição, a velha senhora começa a dar sinais de obsolescência. Vazamentos provocados por micrometeoritos são recorrentes, e o mais recente obrigou a tripulação a ficar restrita a um compartimento. Baterias pifam, o encanamento entope e o banheiro deixa de funcionar. Por esses e outros motivos, a ISS deve em breve passar por uma reformulação. Em parceria com a Nasa, a empresa privada Axiom Space pretende encaixar novos módulos na antiga estrutura, derrubando equipamentos obsoletos para se queimarem na reentrada, até que a estação esteja totalmente reformada, em 2028. Ela teria então mais conforto, tecnologia de ponta e, em sua parte inferior, o maior observatório de vidro do gênero.
Assim como a ISS era mais avançada do que o Skylab e a Mir, provavelmente a Axiom será melhor do que a atual versão. Não que isso seja relevante para os desbravadores de duas décadas atrás. Os cosmonautas Gidzenko e Krikalev contam que o colega americano Bill Shepherd fez um discurso simples e motivador quando eles ligaram a força da estação internacional pela primeira vez: “Temos luz, água quente e banheiro. Estamos em casa”.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714