O risco era, por assim dizer, abissal. Uma exploração submarina recente havia revelado que o processo de deterioração dos escombros do Titanic — o “inafundável” transatlântico construído na Irlanda do Norte, que afundou na viagem inaugural, de Southampton (Inglaterra) para Nova York (EUA), em 1912 — estava avançando de modo inesperado, e, por isso, em breve nada restaria dele. Assim, as imagens mais novas do navio às quais as futuras gerações teriam acesso seriam de 2005.
Isso só não ocorrerá em razão dos esforços de um milionário americano: Victor Vescovo. Fundador do grupo de investimentos Insight Equity Holdings, ele financiou e dirigiu uma empreitada que registrou, nos oito primeiros dias de agosto, em filme e fotos, o que ainda sobrevive de reconhecível do Titanic no fundo mar. São imagens que ficarão para a posteridade — e provavelmente estarão entre as derradeiras, se não forem as últimas, da simbólica embarcação.
A primeira expedição a retratar o transatlântico naufragado data de 1985. Depois dela, outras dezesseis foram realizadas — incluindo quatro de cunho turístico. A de Vescovo, portanto, foi apenas a 17ª, depois de 107 anos do trágico acidente. A missão do americano, no entanto, se diferencia das anteriores em dois aspectos. Primeiro, pelo uso do veículo submersível Limiting Factor. Construído pelo milionário, nos últimos três anos, ao custo de 200 milhões de reais, o submarino é o mais avançado de seu estilo — nenhum outro consegue chegar ao ponto mais abissal do planeta, localizado na Fossa das Marianas, a quase 11 quilômetros de profundidade, na qual Vescovo esteve em maio. O segundo diferencial: a própria equipe do americano acredita que nunca mais alguém vai registrar destroços identificáveis do Titanic. A conclusão se deve à velocidade com que a pressão atmosférica e o contato com a água salgada estão atuando para danificar o casco do transatlântico. A previsão é que até 2030 ele se torne irreconhecível — e se esvaia até 2050.
Será, então, o fim de uma embarcação que virou emblema de ambições desmedidas. Quando iniciou a fatídica rota, em 10 de abril de 1912, o Titanic era o maior navio do globo, tido como impossível de afundar. Contudo, na noite de 14 de abril, colidiu com um gigantesco iceberg e foi a pique, matando 1 517 dos 2 223 passageiros. O drama inspirou o filme Titanic (1998), do canadense James Cameron, a terceira maior bilheteria da história do cinema.
O registro do navio no fundo do Atlântico marca o espírito aventureiro de Victor Vescovo. Ele já chegou ao ponto mais profundo de quatro dos cinco oceanos — só falta o do Ártico. Ex-oficial da Marinha dos Estados Unidos, Vescovo é afeito ao perigo. Além de se embrenhar pelos territórios abissais dos mares, ele gosta de cortejar as alturas — em 2012, aos 46 anos, já havia escalado as montanhas mais elevadas de cada um dos cinco continentes. O americano pode se orgulhar de ter um ímpeto semelhante ao de personagens como o naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), que de 1799 a 1804 viajou pela América do Sul, financiado pela Espanha, com o propósito de catalogar espécies de animais e plantas. Ele justificava assim suas empreitadas: “O conhecimento da natureza universal fornece um prazer intelectual e um senso de liberdade que nenhum golpe do destino ou mal pode destruir”. O mar vai destruir o que sobrou do Titanic — mas não a possibilidade de conhecer como ele era pouco antes de desaparecer. Isso, graças a um aventureiro do século XXI.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650