Uma reunião recente entre técnicos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Tribunal de Contas da União (TCU) traçou as linhas gerais de uma estratégia para tentar conter aquilo que ambas as Cortes consideram como um enorme risco à normalidade democrática: a dúvida que vem sendo constantemente difundida por alguns políticos sobre a lisura do processo eleitoral. A preocupação ganhou corpo após Jair Bolsonaro ter citado a invasão do Capitólio por eleitores do ex-presidente americano Donald Trump para voltar a levantar suspeitas sobre a segurança das urnas eletrônicas e advertir que o Brasil, em 2022, poderá enfrentar um “problema pior”. No TSE, a declaração do presidente, replicada insistentemente pelos apoiadores dele nas redes sociais, foi interpretada como algo mais que um simples alerta. Foi considerada uma ameaça. Por isso os ministros decidiram reagir às pregações pela volta do voto impresso em duas frentes. A primeira, política, já está curso.
Na segunda-feira 1º, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, se reuniu com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), simpatizante do projeto que prevê a instalação de impressoras nas urnas eletrônicas. A eleição continuaria sendo digital, mas cédulas seriam armazenadas em uma urna própria para permitir uma eventual recontagem de votos. “Sempre confiei no sistema eleitoral, mas ele é infalível, inviolável? Acho que não. Hoje se vive num mundo cibernético muito contencioso e penso que o sistema pode ser aferido pelo voto impresso”, disse Lira a VEJA. Eleito presidente da Câmara com o apoio de Bolsonaro, ele se diz disposto a colocar o projeto em pauta e a reservar desde já verbas do Orçamento para garantir a impressão dos votos em 2022.
O maior receio dos ministros com o retorno ao voto impresso é a confusão que pode ser criada a partir daí. Nos Estados Unidos, Trump, sob a alegação de que havia suspeita de fraude, requisitou a recontagem de votos em alguns estados. Depois, solicitou a anulação das eleições. Não foi atendido, mas seu pedido serviu para semear suspeitas contra a lisura do processo e vitaminar os extremistas que invadiram o Capitólio. Aqui, o voto impresso também poderia ser usado como arma por quem estiver disposto a tumultuar o processo. “Quem perder vai contestar o resultado e pedir a conferência entre o eletrônico e o impresso. Isso vai virar uma ação judicial questionando o resultado e vai acabar com um juiz tendo de decidir o resultado das eleições. Tudo de que o país não precisa é judicializar também o resultado das eleições”, disse a VEJA o ministro Luís Roberto Barroso (veja o quadro ao lado).
A segunda frente da reação é pelo lado técnico. TSE e TCU pretendem, juntos, realizar uma auditoria em todo o sistema eleitoral para que não paire nenhuma dúvida sobre a segurança do processo de votação eletrônico. A investigação será conduzida pelo Tribunal de Contas e deve ser concluída até outubro, um ano antes da disputa presidencial de 2022. Em parceria com universidades e centros especializados em processamento de dados, o plano é certificar desde os cuidados com a aquisição das urnas até a fase final de totalização dos votos, passando por testagens de todos os mecanismos de proteção contra tentativas de fraudes.
Em 2002, dois anos após a primeira eleição com 100% de urnas eletrônicas, o TSE tentou implantar um sistema de votação híbrido. Na época, foram selecionados 150 municípios para receber urnas digitais com impressoras acopladas. Resultado: problemas técnicos, filas e atrasos no processo. A experiência foi abandonada. A Justiça teme que, agora, num ambiente inflamado por discursos irresponsáveis que alimentam a desconfiança em relação ao sistema eleitoral, a reedição de uma medida semelhante a de 2002 possa servir como faísca capaz de provocar um terrível incêndio. É isso que os ministros do TSE querem evitar.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728