Com a maior população carcerária de toda a sua história, mais de 830 mil presos, o sistema prisional brasileiro tem grandes problemas, como superlotação, falta de infraestrutura operacional e crime organizado. Apesar dos problemas complexos, os legisladores brasileiros se dedicaram nos últimos meses a uma outra questão que não traz mudanças efetivas ao sistema penitenciário, nem aumenta de fato a segurança da população: mudar o regime de saída temporária dos presos – a popular saidinha, direito concedido apenas aos condenados em regime semiaberto. Ela permite que criminoso visitem à família, estudem e ainda participem de atividades de integração social, cinco vezes ao ano, sem vigilância do Estado. Em 20 de fevereiro, o Senado aprovou o PL-2.253–2022, que suspende essa prerrogativa. A votação teve 62 votos favoráveis, dois contrários e uma abstenção.
Apresentado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), inicialmente o projeto revogava a Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984). Quando chegou ao Senado a suspensão total do direito foi revertida para parcial, por meio de uma emenda aprovado do senador Sergio Moro (União – PR). Foram mantidas as saídas apenas para presos inscritos em cursos profissionalizantes ou no ensino médio e superior pelo tempo necessário das atividades e suspensas as saídas nos feriados. Os legisladores alegam que muitos criminosos não voltam para a prisão depois da saidinha, o que, segundo eles, aumenta a insegurança da sociedade. O PL-2.253–2022 voltou para a Câmara e depois segue para sanção presidencial.
A decisão dos senadores causou muita polêmica, pois foi encarada como um atraso nos direitos dessa população. Não faltaram críticas à justificativa do não retorno das saidinhas. “Esse índice é baixo, um percentual de menos de 5% dos presos não voltam para os presídios”, rebate a advogada Patrícia Villela Marino, fundadora do Instituto Humanitas360, organização não governamental, que trabalha com a reabilitação de presos. Em entrevista à VEJA sobre o tema, ela chama a atenção para a suspensão de um direito previsto na lei, importante na ressocialização, que vai prejudicar a maioria dos detentos que seguem as normas voltando para os presídios depois da saidinha. Abaixo, o bate-papo com Patrícia, que está entre muitos que não concordam com a decisão do Senado.
Você enxerga a saída dos presos em datas comemorativas um privilégio ou um direito?
As saídas temporárias são um direito, não um privilégio, e estão previstas na Lei de Execução Penal brasileira como um mecanismo de ressocialização. Ao contrário do que se imagina, as saídas só podem ser autorizadas para pessoas presas em regime semiaberto e mediante uma série de critérios, como tempo mínimo de cumprimento de pena e bom comportamento. A saída temporária é um instrumento que prepara a pessoa para deixar a prisão, permitindo que ela reate ou estreite laços familiares e comunitários, que ela inicie ou retome os estudos e que busque uma capacitação profissional.
Como funciona em outros países?
Com diferenças na forma de aplicação e nos critérios exigidos, a saída temporária também existe em outros países, como Reunido Unido, Espanha, Itália, Portugal e França. Também é importante dizer que a progressão de regime e a existência de mecanismos de ressocialização não são exclusivos da legislação brasileira, sendo amplamente adotados por outras nações.
A taxa de não retorno dos presos é alta como alegam os senadores? Como é nos outros países?
Como lembrou Rafael Velasco, ex-secretário nacional de Políticas Penais, do ministro Flávio Dino, o percentual de menos de 5% das pessoas presas no Brasil que não retornam após as saídas é baixo. Acontece que as pequenas missões bem-sucedidas dessas pessoas que saem temporariamente para visitar a família, estudar e trabalhar não recebem a mesma atenção da sociedade como as exceções violentas, que são lamentáveis e devem ser acompanhadas de perto, de modo que não se repitam, mas que são – é importante frisar – exceções.
O que você achou da posição do Senado em aprovar o cancelamento das saídas dos presos?
É mais uma demonstração do populismo penal. Sem ter respostas concretas para a crise na segurança pública, parte dos congressistas – nesse caso, infelizmente, a maioria – prefere ignorar os dados, virar as costas para os especialistas e dispensar o debate franco com a sociedade para oferecer uma resposta fácil, espetacular e enganosa a um problema que exige um olhar sistêmico e complexo para o problema. Apostar no regime fechado como solução para o problema da violência e do crime no Brasil é fechar os olhos para o que acontece nos nossos presídios hoje. Quanto mais obstáculos os legisladores criam para a ressocialização das pessoas presas, mais estão empurrando esta população de volta para a vida na criminalidade.
A senhora tem uma grande experiência com o público feminino carcerário devido ao trabalho social do Humanitas360. Sabe me dizer como a notícia tem reverberado entre essas mulheres? O que elas dizem?
Do trabalho que desenvolvemos no Instituto Humanitas360 nos últimos anos, tiro a conclusão de que no sistema prisional brasileiro existe uma maioria de pessoas que busca uma segunda chance. Acontece que a vontade individual delas não basta. Para recomeçarem a vida com autonomia e longe do crime, é preciso que o Estado e a sociedade civil organizada contribuam de forma ativa para construir alternativas, desfazer preconceitos e, passo a passo, devolver esta pessoa ao convívio social de forma digna, com acesso à educação, à saúde e ao trabalho. Veja o número de pessoas que se encontram privadas de liberdade no Brasil. Agora imagine quantas são egressas do sistema prisional. Pense no número de familiares afetados por esta realidade. Estamos falando de milhões de pessoas. É um problema que diz respeito a todos.
Qual seria a medida mais adequada para uma situação como o país passa, onde presos fogem de presídios de alta segurança e com o alto grau do comprometimento da segurança pública com o crime organizado coordenado de dentro dos presídios?
A crise na segurança pública brasileira exige um olhar sistêmico para as suas causas. O encarceramento em massa, a superlotação dos presídios e a restrição dos mecanismos de ressocialização formam as condições perfeitas para tornar os presídios uma espécie de “escola do crime”, onde facções criminosas nascem e arregimentam novos membros. Dobrar a aposta nessa lógica repressiva não vai solucionar o problema, mas alimentá-lo. É que a lógica da segurança pública esteja na inteligência, e não na repressão. Além disso, é urgente que se discuta uma revisão da Lei de Drogas brasileiras, caminho para o qual o Supremo Tribunal Federal parece apontar com o julgamento a respeito do porte de Cannabis para uso pessoal. Os congressistas brasileiros precisam abandonar a busca por dividendos políticos de curto prazo e amadurecer o debate sobre essas questões. Do contrário, não vamos encarar o problema de frente.