A primeira noite da enfermeira Reynnis Amaya Ugas, de 33 anos, em sua nova cidade foi incômoda e, por mais contraditório que pareça, feliz. Dormiu no chão da sala, sem colchão, atacada pelos mosquitos e, mesmo assim, sentiu alívio e gratidão após uma longa jornada. Há dois anos, ela estava em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, para começar uma nova vida a 4 400 quilômetros de Ciudad Guayana, às margens do Rio Orinoco, na Venezuela, onde nasceu. Durante anos, ela relutou em deixar a carreira em um hospital, até que percebeu que trabalhava apenas por paixão. Seu salário só dava para comprar uma cartela de ovos no mercado formal, na dura crise econômica patrocinada pelo regime do ditador Nicolás Maduro. Em 2019, seu filho adoeceu com grave infecção intestinal— com remédios em falta, pensou que ia perdê-lo. Foi a gota de água.
Em pouco tempo, Reynnis estava trabalhando em Canoas como padeira em um supermercado, ao lado do marido, Neuman (açougueiro), e da filha de 16 anos, Angelina (aprendiz). O casal também tem um filho, Alejandro. No Rio Grande do Sul, já viviam a mãe, um irmão, uma irmã, o cunhado e sobrinhos. Todos migraram nos últimos três anos, período em que esse fluxo se intensificou. São operários, pedreiros, cozinheiras, motoristas, babás, copeiros e outros que levaram um novo sotaque às cidades do Sul. E não são poucos. A região concentra quase metade dos mais de 66 200 venezuelanos realocados pelo governo desde 2018, quando estourou a pior crise migratória da América Latina (veja o quadro).
As razões para estarem tão longe da fronteira estão na dinâmica da economia local e na tradição sulista de receber imigrantes. A construção civil foi responsável pela maior parte dos empregos, e o Sul é onde esse setor mais vem crescendo, segundo o IBGE. Das montadoras no Paraná aos frigoríficos no oeste catarinense, várias empresas foram até as ONGs que acolhem venezuelanos para preencher vagas nas linhas de produção. Enquanto no resto do país os imigrantes se concentraram nas capitais, no Sul eles se espalharam pelo interior. Mesmo nas pequenas cidades, há oportunidades na indústria e no setor de serviços. “Essas empresas não conseguem fechar seus quadros de funcionários só com moradores locais”, diz a gerente de projeto Thais Braga, da AVSI Brasil, ONG que apoia os venezuelanos pagando os primeiros três meses de aluguel e doando itens como geladeira, fogão e cama.
A realidade do Sul contrasta com a de Roraima. Desde que a fronteira reabriu, em junho de 2021, episódios de xenofobia e violência voltaram às ruas de Pacaraima, porta de entrada para o Brasil. No fim de novembro, moradores lançaram fogos de artifício contra imigrantes durante protesto pela onda de assaltos e morte do dono de um bar — a polícia não divulgou a nacionalidade dos suspeitos. Uma pesquisa da ONU mostra que quem ficou em Roraima ganha, em média, metade do salário mínimo e tem menos acesso a escolas e creches. Quem foi realocado tem média de salário ligeiramente acima do mínimo.
Nos casos bem-sucedidos de integração, as pequenas Venezuelas já provocam mudanças na paisagem cultural. Em Chapecó, no extremo oeste catarinense, há bares e clubes com músicas e comidas típicas nos bairros que concentram a nova comunidade. Com a falta dos temperos típicos e das verduras encontradas na Venezuela, os migrantes improvisam cozinhando com os similares nacionais. “Aceitamos a cultura daqui, adaptamos a nossa, e um pouco das duas coisas misturadas faz algo melhor”, diz a babá Marlene Lezama, de 73 anos. Em tempos de acirramento político e ataques de ódio, a forma como a Região Sul acolhe os vizinhos não deixa de ser uma esperança.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773