O serviço de inteligência serviu durante duas décadas como olhos, ouvidos e até como mãos criminosas ao regime militar. Na democracia, essas disfunções, embora em escala incomparavelmente menor, nunca foram completamente superadas. No governo Collor, um agente foi flagrado misturado aos jornalistas que cobriam o Palácio do Planalto. No governo Fernando Henrique, um grupo espionou clandestinamente personagens envolvidos no processo de privatização de empresas estatais. No primeiro mandato de Lula, a bisbilhotagem oficial teve como alvo os Correios, empresa que deu origem ao escândalo do mensalão. Depois, no segundo mandato, descobriu-se que a Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, estava na proa de uma investigação ilegal que mirava, entre outros, o Supremo Tribunal Federal. Com esse histórico, é compreensível o nível de desconfiança que sempre ronda as atividades do órgão — e continua rondando.
Pelas regras, a Abin existe para coletar informações estratégicas que auxiliem o presidente da República a tomar decisões de interesse do Estado. O pressuposto é vago e dá margem a interpretações distintas. É ou não de interesse do presidente saber antecipadamente, por exemplo, que um de seus auxiliares está envolvido em algo que pode se transformar num problema ou num escândalo? É ou não interesse do presidente conhecer detalhes do que se passa nos bastidores de repartições sensíveis da administração? É ou não interesse do presidente ser informado sobre conspiratas ou traições que podem desestabilizá-lo? Um dos primeiros atos do atual governo foi transferir a Abin do Gabinete de Segurança Institucional para a Casa Civil, pasta que cuida, entre outras coisas, da liberação de verbas e da nomeação para cargos públicos. Desde então, o Congresso debate a hipótese de o serviço de inteligência ser usado para fins políticos. Não há provas de que isso esteja acontecendo, mas a preocupação agora aflige inclusive os próprios aliados do governo.
Nos últimos meses, o Diário Oficial da União publicou editais formalizando a lotação de agentes e oficiais da Abin em vários ministérios e órgãos da administração. Para preservar a identidade dos espiões, os despachos omitem o nome do servidor e, às vezes, até o cargo que será ocupado. Em alguns casos, o ministro nem sequer é informado sobre a nomeação. A assessoria internacional do Ministério da Previdência, por exemplo, conta desde o mês passado com o apoio de um especialista em lavagem de dinheiro e terrorismo. Ninguém consegue explicar ao certo qual é exatamente a contribuição que alguém com tais habilidades pode oferecer para o bom funcionamento do sistema de aposentadoria. O ministro Carlos Lupi, do PDT, disse que não está preocupado. “Meu irmão, para mim tudo tem de ter transparência. Eu não tenho medo dessas coisas não”, garantiu.
No Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, o cargo de coordenador-geral de Informações Estratégicas é ocupado desde março por outro oficial da Abin. O ministro Waldez Góes, também do PDT, soube apenas na semana passada que seu auxiliar é oriundo dos quadros do serviço de inteligência. A assessoria do ministério esclareceu que o servidor foi requisitado pelo ministro e tem um currículo compatível com o cargo. Localizado por VEJA, o próprio agente explicou: “Estou aqui como servidor do ministério, não como oficial da Abin”. Ele garante que as atividades não se misturam. Situação parecida ocorre em outras duas pastas. Um oficial de inteligência foi lotado em março na Secretaria Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça comandado pelo ex-deputado do PT Wadih Damous. Já o Ministério da Gestão e da Inovação ganhou um “especialista” para reforçar a área de segurança do trabalho.
No governo Bolsonaro, havia cerca de setenta agentes e oficiais da Abin distribuídos em ministérios, autarquias e órgãos federais. Eles ocupavam cargos técnicos, mas não deixavam de repassar ao serviço de inteligência informações consideradas “sensíveis”. Um ex-dirigente da Abin ouvido por VEJA diz que, em linhas gerais, esses cargos servem como fachada para permitir à agência ter acesso a repartições importantes. “Ninguém deixa de ser espião porque está lotado em outro órgão. Nós temos compromisso com o Estado e a produção de informações ganha em agilidade e credibilidade quando o oficial ocupa um posto estratégico”, explicou. O governo Lula também colocou oficiais na Agência Nacional de Transportes Terrestres e no BNDES, onde, aliás, um deles exerce o estratégico cargo de assessor da presidência. “O servidor ajuda no aprimoramento dos protocolos de segurança do banco, especialmente na segurança de sistemas”, informou o BNDES, palco de muitos problemas nas gestões petistas.
A Abin não informou quantos de seus agentes estão cedidos a outras repartições do governo, mas ressaltou que uma medida provisória assinada pelo presidente Lula em janeiro estabeleceu que são “irrecusáveis” as requisições dos funcionários. A Casa Civil não respondeu aos questionamentos. O chefe da pasta, o petista Rui Costa, vai prestar depoimento na semana que vem à Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência. “Vamos perguntar ao ministro sobre essas nomeações e tentar entender por que um órgão sensível como a Abin foi transferido sem explicação para um ministério que cuida de interesses políticos do governo”, diz o deputado Paulo Alexandre Barbosa (PSDB-SP), presidente do órgão. Informação continua sendo sinônimo de poder.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841