Meu mundo parou em 14 de março de 2018, dia em que mataram minha mulher, Marielle Franco. Tinha me encontrado com ela, na hora do almoço, na Câmara de Vereadores do Rio. Deixamos o elevador passar pelo andar três vezes antes de eu embarcar. Nos beijamos e, enquanto a porta fechava, ela gesticulou, sem emitir nenhum som, “eu te amo”. Foi a última visão que tive do amor da minha vida. Voltei cedo para casa, com gripe, e não liguei a televisão. À noite, a notícia de seu assassinato e do motorista Anderson Gomes numa rua do Rio, dada por uma amiga, fez o chão desaparecer. Aquilo não fazia sentido e minha reação foi questionar repetidamente: “Mataram a Marielle. Quem mandou? Por quê?”. Desesperada, cheguei a pegar uma faca para enfiar em minha barriga, mas me seguraram. Às vésperas de completar seis anos do crime, as perguntas seguem sem resposta ecoando em minha cabeça e em toda a sociedade.
De minha dor dilacerante nasceu o livro Marielle & Monica (editora Rosa dos Tempos), que será lançado no início de abril. Entre viagens internacionais, que fiz a convite de entidades de direitos humanos, coloquei nossa história no papel. Entre idas e vindas, foram catorze anos de relacionamento, depois que nos conhecemos no Complexo da Maré. Ela tinha 24 anos, e eu, 18, ambas nos entendíamos como héteros. Nossa união avassaladora precisou romper muitos preconceitos para existir. Estávamos no melhor momento de nossas vidas, morando juntas e dividindo sonhos. Sua morte me levou a um luto profundo, um misto de negação, revolta, saudade, tristeza e culpa. Perdi 14 quilos em quinze dias. Não me perdoava por não ter ido vê-la no local onde foi assassinada, com quatro tiros na cabeça. Meses depois, num impulso irracional, fui ao cemitério com uma marreta com a ideia de quebrar o túmulo para estar com ela. Uma coruja pousou no local no instante em que me preparava para golpear o concreto. Isso me trouxe à realidade e, felizmente, desisti.
Na época do assassinato e nos primeiros anos que se seguiram, não contei o inferno que vivi por receio de tirar o foco do caso. A espera pelo desfecho do crime me fez muito mal. Não conseguia aceitar que tinham levado minha alma gêmea. Vivia no automático. Em muitos momentos, a apatia e a melancolia tomaram conta de mim. Me entreguei à bebida. O álcool sempre foi uma fuga para lidar com as emoções, algo que só piorou com a morte de Marielle, junto com a depressão. A crença no espiritismo não me permite tirar a própria vida, mas, no descontrole, tentei suicídio. Numa manhã, completamente embriagada, tomei todos os remédios psiquiátricos que encontrei em casa. Um grande amigo, David Miranda, me salvou e me levou ao hospital. Frequentei o Alcoólicos Anônimos e agora reconheço a minha dependência. Estou sóbria há cinco meses.
Como vereadora, levo suas pautas adiante, como os direitos dos menos favorecidos e o feminismo. Marielle tinha pulsão pela vida. Se tivesse percebido qualquer ameaça, teria denunciado, mas nunca relatou nada estranho. No início das investigações, chegaram a cogitar que o objetivo fosse atingir o Marcelo Freixo (ex-deputado estadual), de quem ela foi assessora. Nunca se comprovou. Muito se fala de uma possível ligação do crime com a milícia, mas também não se comprovou ainda a motivação. Acompanho de perto as investigações na delegacia, no Ministério Público e, agora, na Polícia Federal. Há uma grande expectativa quanto a uma possível delação de Ronnie Lessa, réu pelo duplo assassinato. Pessoalmente, não descarto ninguém como mandante. Hoje, mais do que nunca, tenho esperança de que as respostas venham à tona. Só vou ter paz com a solução do caso.
Monica Benicio em depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881