Preso sob a acusação de haver executado a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes em 2018, no Rio de Janeiro, o policial militar reformado Ronnie Lessa, como era de esperar, nega sua participação no crime, diz ser vítima de armação e aponta o dedo para um morto, o chefão miliciano Adriano da Nóbrega. Em entrevista exclusiva a VEJA por meio de videoconferência, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, Lessa também confirmou que recebeu ajuda do presidente Jair Bolsonaro no fim de 2009 — embora afirme que mal o conhece. Depois de perder parte da perna esquerda na explosão de uma bomba em seu carro, ele conta que o presidente, então deputado federal, intercedeu para que seu atendimento fosse priorizado na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), no Rio de Janeiro. “Bolsonaro era patrono da ABBR. Quando soube o que aconteceu, interferiu. Ele gosta de ajudar a polícia porque é quem o botou no poder. Podia ser qualquer outro policial”, disse.
O PM reformado nem teria feito muito uso do favor: deixou o tratamento após duas semanas, porque a prótese “era bem simplesinha” e o seguro que recebeu lhe permitiu comprar uma melhor. A proximidade do clã presidencial com a ABBR é pública e notória: entre 2004 e 2018, Bolsonaro destinou ao menos 4,6 milhões de reais em emendas parlamentares para a instituição, sem contar a generosidade dos filhos. Lessa, o interno número 33 da Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, desde dezembro de 2020, ainda acrescenta: “No final dessa história eu saio como mal-agradecido. Nunca fui apertar a mão dele”.
Com aparência envelhecida e pesando 65 quilos, 30 a menos do que quando foi preso, em março de 2019, Lessa, 51 anos, gesticula nervosamente, com três algemas entrelaçadas nos pulsos, ao falar do duplo homicídio. Durante a uma hora fixada pelo Departamento Penitenciário Nacional para a entrevista, o sargento reformado insistiu que nunca foi próximo do presidente, apesar de ter sido vizinho dele e do filho Carlos em um condomínio na Barra da Tijuca. “É um cara esquisito. Se vi cinco vezes na vida, foi muito. Um dia cumprimenta, outro não, e mesmo assim só com a mãozinha. E nunca vi os filhos dele”, garante.
Na entrevista, Lessa atribui a intermediação do crime ao ex-capitão Adriano, chefe do bando de milicianos e assassinos de aluguel conhecido como Escritório do Crime, que foi morto pela polícia na Bahia em 2020. “Ele estava num patamar em que não entrava mais num carro para dar tiro em ninguém, mas tenho quase certeza de que o grupo dele fez”, acusa. Na sua versão, acabou implicado por obra do próprio Adriano, que quis se vingar por Lessa não tê-lo aceito como sócio em uma academia de ginástica da qual era dono em Rio das Pedras, área de atuação do miliciano. Só que o tal “grupo dele” aparece, no processo de federalização do caso, como sendo o do próprio Lessa: o primeiro suspeito de ter executado Marielle e Anderson, o também miliciano Orlando da Curicica, sugeriu em sua delação ao Ministério Público Federal “que o pessoal do ex-PM Ronnie Lessa” integrava o Escritório do Crime.
Após Curicica ser descartado como autor dos disparos, todas as evidências recaíram sobre Lessa, que nega de pés juntos. “Eu não matei aquela menina. Hoje consigo enxergar que existia plano A, B e até um C”, disse. E segue explicando à sua maneira as provas que constam da denúncia do MP fluminense. Por que, dois dias antes do crime, buscou o endereço do ex-marido de Marielle que constava como o dela em um portal da polícia — e onde a vereadora esteve naquele dia, horas antes? Na versão dele, porque recebera uma ligação com oferta de permuta de um imóvel naquele exato local. Por que também buscou na internet um silenciador para submetralhadora HK MP5, a mesma que, segundo a polícia, foi usada no crime? De acordo com Lessa, era uma inocente procura de peças — mais uma coincidência incrível — para uma réplica da arma. Já os papéis encontrados em seu poder com o nome do ex-vereador Cristiano Girão, um dos suspeitos de ser o mandante do duplo homicídio, seriam parte de uma investigação que fazia na polícia e que, em sua defesa, diz que não tinha nada a ver com o caso.
A promotoria está convicta da condenação de Lessa, apesar dos tropeços do processo. Nestes quatro anos, as investigações já correram o risco de passar para a esfera federal, tiveram cinco delegados à frente, duas promotoras deixaram o inquérito alegando “interferências externas” e há uma série de interrogações ainda sem resposta, inclusive as duas mais prementes: quem mandou matar Marielle e por quê. O próprio Lessa, no entanto, se diz confiante em que vai se livrar das acusações e faz planos para lá de simples: quando sair da cadeia, vai viver da criação de peixes, “longe do Rio”. Faz sentido. Contar histórias de pescador Lessa já sabe.
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Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779