Há seis anos, o Brasil — e o mundo, dadas as esperadas repercussões internacionais — quer saber quem matou a vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, e o motorista que a conduzia, Anderson Gomes. Desde aquela noite de 14 de março de 2018, a partir da emboscada que a assassinou a tiros, a mulher negra de 38 anos, a um só tempo sorridente e firme, ex-moradora de favela, virou símbolo da defesa dos direitos humanos. Saber quem foi o mandante e as motivações do crime são respostas que não podem ser desdenhadas, sem as quais o país continuará a rodar em círculos numa dúvida que só alimenta os bandidos. O mistério permanece, atrelado a um inquérito tortuoso, em que as hipóteses sempre foram mais abundantes do que as provas. Até o início do ano passado, durante a presidência de Jair Bolsonaro, o caso vinha sendo tocado em banho-maria. Com a eleição de Lula, o ex-ministro da Justiça, Flávio Dino, o transformou em necessária bandeira, envolvendo a divisão fluminense da Polícia Federal. Os prometidos avanços, a tão esperada verdade, porém, ainda se escondem debaixo de uma sombra nebulosa.
Um facho de luz chegou a ser aberto, em julho do ano passado, com a delação premiada do ex-policial militar Élcio Queiroz, o primeiro acusado pelo assassinato, que apresentou detalhes da execução. Na virada do ano, um comparsa, também ex-PM, Ronnie Lessa, apontado como autor dos disparos, entrou em cena, da cadeia de segurança máxima de Campo Grande, onde está detido: ele estaria disposto a revelar quem encomendou o homicídio, em troca da redução da pena de cinco anos. Em janeiro, o site de notícias The Intercept fez estardalhaço ao noticiar que Lessa, também em acordo de delação, teria apontado o dedo para o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCE) e ex-deputado estadual, Domingos Brazão, nome que frequenta o inquérito desde 2019, mas que até o momento não foi indiciado. “Nunca tinha visto na vida a Marielle e nem sabia quem era até ocorrer esse crime”, diz Brazão, negando qualquer envolvimento. “Também não conheço Élcio Queiroz ou Ronnie Lessa.” Passados dois meses do barulho ao redor de um novo nome — enfim, saberíamos quem matou Marielle — não apareceram elementos factuais que cheguem a Brazão, e o que soava como aproximação de um desfecho, estancou, sem avanço real.
O que há, de fato, segundo apurou VEJA: a delação de Lessa está encaminhada, mas não foi homologada. O advogado de Lessa, Bruno Castro, nega que seu cliente tenha fechado qualquer acordo e alega inocência. Duas pessoas que acompanham o inquérito disseram ter havido apenas conversas preliminares com o suspeito. No Ministério Público, a ordem é ter cautela. A suposta participação de Brazão brotou de uma dedução — insuficiente, por ora, para condená-lo.
Em outubro do ano passado, a investigação passou a tramitar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), indício nítido de que haveria algum investigado com prerrogativa de foro especial, requisito cumprido apenas por Brazão, conselheiro do TCE. “Já peticionei pelo menos duas vezes ao ministro Raul Araújo, do STJ, para ter acesso aos autos e me coloquei à disposição para qualquer esclarecimento, mas não obtive resposta”, queixa-se o investigado, para quem há apenas “rumores” contra si.
A desconfiança sobre ele surgiu em 2019, quando a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, resolveu abrir a investigação da investigação. À época suspeitava-se que Orlando Araújo, miliciano conhecido como Orlando Curicica, e Marcello Siciliano, um ex-vereador com quem Brazão disputava espaço político em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, pudessem ter ordenado o crime. Levado a um presídio de segurança máxima, Curicica decidiu colaborar com as autoridades e confessou que pessoas ligadas ao conselheiro teriam plantado essa versão. O objetivo seria tomar conta de atividades ilegais mantidas pelo miliciano, como máquinas caça-níqueis e venda de internet pirata. A revelação motivou uma denúncia por obstrução da Justiça contra Brazão, mas o processo foi arquivado por falta de provas, no ano passado.
Ainda que Brazão tenha argumentos plausíveis a seu favor, e o benefício da dúvida seja dogma impositivo, a PF segue trilhando os vãos ao redor do personagem. “O novo inquérito parte desse manancial de elementos que já foram apurados”, relatou a VEJA uma pessoa com acesso ao trabalho dos delegados. O fio a ser puxado é o da motivação de quem mandou matar Marielle. Uma possibilidade, segundo os investigadores, é de que a então vereadora teria incomodado o grupo de Brazão, ao começar a atuar nas áreas da Zona Oeste, onde o ex-deputado e sua família mantêm influência. Ele nega veementemente (e algumas alas da polícia acham que, de fato, não seria muito inteligente matar um político em função disso). A questão é que sua ficha pregressa não ajuda muito. Contra o conselheiro, já foram levantadas suspeitas de corrupção, fraude, improbidade administrativa e compra de votos. Aos 22 anos, ele respondeu por homicídio de um homem que alega ter ameaçado sua família. Foi absolvido. “Tratou-se de legítima defesa, a Justiça me deu razão”, diz.
Além de Brazão, figuram no rol dos principais suspeitos Cristiano Girão, ex-vereador do Rio ligado à milícia do bairro da Gardênia Azul, que está preso, acusado de ter encomendado a Ronnie Lessa a execução de um desafeto, e Rogério de Andrade, bicheiro a quem o ex-PM teria se associado para controlar pontos de caça-níqueis na Barra da Tijuca. Há caminhos de investigação, mas ainda brotam muitas dúvidas e inconsistências. Quase seis anos depois, a pergunta que o Brasil inteiro faz ainda permanece sem resposta: afinal, quem mandou matar Marielle?
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881