Um carro descaracterizado, de vidros escuros, surge de repente a toda a velocidade, estaciona e, a despeito da rapidez da chegada, ninguém desce. Na sequência, um homem fardado que estava debruçado sobre o muro de uma vistosa residência no Lago Sul, o bairro mais chique de Brasília, faz um aceno ao motorista. Três minutos depois, outros dois homens fardados saem da casa e se posicionam na entrada da garagem para escoltar os dois veículos que chegam em alta velocidade. Mais alguns minutos, e todo o roteiro se repete em sentido contrário, com o comboio deixando o local. O vigilante armado segue postado no muro, e assim permanecerá por toda a madrugada. Essa atípica movimentação na residência do comandante da Aeronáutica acontece algumas vezes por dia. O aparato de segurança também pode ser observado na chegada e na saída do prédio onde funciona o Comando da Força Aérea na Esplanada dos Ministérios. São soldados e oficiais destacados para proteger o brigadeiro Marcelo Damasceno, desde que ele, há pouco mais de um mês, foi ameaçado de morte.
No dia 28 de outubro, o comandante recebeu em casa um envelope pardo, postado numa agência dos Correios no Rio de Janeiro. Dentro, havia um manuscrito em letra de fôrma, no qual o autor insinua ter conhecimento sobre a rotina do brigadeiro, dos familiares dele, faz uma exigência e o adverte sobre o que aconteceria caso ela não fosse atendida. A exigência: a Força Aérea deveria entregar 200 fuzis, cinquenta metralhadoras, cinquenta pistolas, cinquenta granadas e “farta” munição. A ameaça: se as armas não fossem entregues até o dia 11 de novembro, haveria uma retaliação violenta contra o comandante e seus familiares. De acordo com as instruções, o material deveria ser embarcado em um caminhão e levado até uma rua da Cidade de Deus, uma das favelas mais conhecidas do Rio de Janeiro. No final da carta, são assinaladas as iniciais C.V., referência à facção criminosa Comando Vermelho. O caso está sendo investigado em sigilo pela Polícia Federal e pelo Centro de Inteligência da Aeronáutica.
A exigência feita pelos supostos criminosos era tão absurda que a primeira reação do comandante foi imaginar que estava sendo vítima de um trote, uma brincadeira de mau gosto. Ao analisar a carta, no entanto, alguns detalhes chamaram a atenção dos policiais, que recomendaram uma apuração mais profunda. Os peritos não encontraram impressões digitais nem qualquer vestígio de material genético, o que indicava que o autor se preocupou em não deixar pistas que permitissem sua identificação. Outro detalhe que chamou atenção: o manuscrito enviado ao brigadeiro era uma fotocópia, o que também indica que o autor tem um nível no mínimo razoável de conhecimento. Peritos consultados por VEJA explicam que a polícia pode elucidar casos assim a partir do exame da tinta da caneta utilizada ou da pressão exercida sobre o papel. A cópia inviabiliza a utilização dessas técnicas. Esses cuidados sugerem que o autor pode não ser quem se apresenta, o que justificou uma elevação do nível do alerta de segurança.
A reação do presidente Lula à suposta ameaça do Comando Vermelho
O presidente Lula foi informado da ameaça pelo próprio comandante, classificou-a como absurda e se disse impressionado com a ousadia. Os ministros da Defesa, José Múcio, e da Justiça, Flávio Dino, também foram comunicados. Dino designou um delegado da Polícia Federal exclusivamente para cuidar do caso. Um dos primeiros passos nesse tipo de investigação é avaliar a credibilidade da ameaça e, caso seja detectado que existe um risco real à integridade da autoridade ameaçada, coloca-se em prática imediatamente uma série de medidas de segurança. Isso explica o reforço no esquema de segurança do comandante e de seus familiares. O passo seguinte é a busca pelo autor. A PF está rastreando imagens de câmeras de segurança de pontos próximos da agência dos Correios onde a carta foi postada, no Rio de Janeiro. Além disso, aprofundou a análise científica do envelope e da carta, na expectativa de encontrar elementos invisíveis a olho nu que possam fornecer alguma pista. Por enquanto, há três linhas de apuração.
A primeira é de que a carta tenha, de fato, partido de um integrante do Comando Vermelho. O grupo criminoso é um dos maiores do país, domina o tráfico de drogas e de armas em várias regiões e é responsável por assaltos a bancos. No entanto, segundo os investigadores, o método utilizado para ameaçar o comandante não é usual da facção. Uma segunda frente de investigação trabalha com a hipótese de uma “produção interna”. A carta pode ter sido escrita por um militar, da ativa ou da reserva, que, por razões funcionais ou políticas, teve algum interesse contrariado e poderia estar tentando assustar o comandante. A terceira linha considera a possibilidade de o brigadeiro ter sido escolhido como alvo de extremistas. Depois da exigência e da ameaça, Damasceno é advertido de que não adiantava procurar o “Xandão”, referência ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), nem o ministro da Justiça Flávio Dino, porque “todos comem nas nossas mãos”.
Os detalhes da carta para o comandante da Aeronáutica
No envelope, está registrada a hora e a agência dos Correios onde a carta foi postada. Consta como endereço do remetente o Complexo Penitenciário de Bangu, onde, de fato, estão presos criminosos ligados ao Comando Vermelho. Percebe-se também que o autor da ameaça tem algum conhecimento sobre a Aeronáutica, como o tipo de armamento disponível em seus arsenais. Ainda chama atenção o fato de a carta ter erros estranhos de português, que, segundo os investigadores, podem ser mero despiste. Para reforçar a necessidade de investigar a terceira hipótese, um auxiliar do presidente da República lembrou que, nos últimos dois meses, houve um recrudescimento das tensões na caserna, motivada principalmente pela delação do tenente-coronel Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, e pela guerra entre Israel e o Hamas, que reacendeu a polarização no país em meio a diferenças claras de posicionamento entre direita e esquerda em relação ao conflito.
Discreto e avesso a holofotes, Marcelo Damasceno galgou os mais importantes postos dentro da Aeronáutica. Em 2005, foi piloto do jato usado pelo então presidente Lula. Recentemente, ganhou visibilidade diante das operações de repatriação dos brasileiros que fugiam da guerra na Faixa de Gaza. A Força Aérea também está atuando na operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) com o objetivo de combater o tráfico de drogas e de armas no Rio de Janeiro. Por tudo isso, o brigadeiro é considerado o comandante militar mais próximo do presidente da República. Por último, a carta foi postada duas semanas depois da primeira missão de repatriação. São peças que se encaixam nas hipóteses sob investigação. Desde que o prazo dado para cumprir a exigência de entregar as armas se esgotou, há um mês, a atenção com o esquema de segurança do brigadeiro foi redobrada — ele próprio passou a carregar uma pistola. Por cautela. Afinal, como ressalta um graduado assessor militar, as ruas estão cheias de loucos.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871