Chefe da Casa Civil no primeiro mandato de Lula, o petista José Dirceu, condenado à prisão nos escândalos do mensalão e do petrolão, ainda é uma figura proeminente em Brasília, como ficou claro em sua recente festa de aniversário, prestigiada por integrantes das cúpulas dos três poderes. Um dos mais afiados analistas políticos do país, Dirceu tem associado a queda de popularidade do presidente da República e do governo a uma série de fatores, mas sempre dá destaque à força do conservadorismo e à capacidade da “extrema direita” de usar determinadas pautas para espalhar “pânico moral” e desgastar a gestão petista. Outros integrantes influentes do PT concordam com essa análise e compartilham da tese de que Lula e a legenda estão perdendo o debate em temas importantes para os adversários nas redes sociais. Há consenso no diagnóstico. O problema está na dúvida sobre como reagir. Até agora, os governistas não definiram nem um discurso nem uma estratégia eficientes para estancar a sangria — entre evangélicos, por exemplo — e evitar que bandeiras caras ao ex-presidente Jair Bolsonaro avancem no Congresso.
Com a esquerda em minoria no Legislativo, o conservadorismo não tem encontrado dificuldade para prevalecer em votações importantes, mesmo quando defende políticas públicas consideradas controversas. Na quarta-feira 20, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que extingue a saída temporária de presos em regime semiaberto, exceto, em casos bem específicos, para estudar. “O projeto não resolve a questão da segurança pública, mas é um primeiro e grande passo no combate à impunidade”, disse o relator do texto, deputado Guilherme Derrite (PL-SP), que se licenciou do cargo de secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo só para participar da votação. Da tribuna, Derrite citou casos de presos beneficiados pela chamada saidinha que cometeram crimes. Sua fala foi ponderada para os padrões do bolsonarismo, que lançou mão do caso nas redes sociais para acusar o governo Lula e o PT de defenderem “bandido” e “vagabundo”. A questão não é tão simples e objetiva assim, mas os governistas, com medo do desgaste de imagem, não se esforçaram para fazer o debate de mérito. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), nem sequer fez uso da palavra e terceirizou a tarefa para o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ).
Autor do projeto original, apresentado em 2011, Pedro Paulo discursou contra a restrição à saída temporária, alegando que a medida dificulta a ressocialização de presos do semiaberto. Afirmou ainda que, no feriado do Natal do ano passado, apenas 5% dos beneficiados pela regra não voltaram para a cadeia no tempo devido — e que, no estado de São Paulo, só 0,23% cometeu algum delito durante a saidinha. De nada adiantou. Os deputados aprovaram o projeto em votação simbólica, que é adotada quando há amplo apoio à iniciativa e os congressistas não fazem questão de registrar seu posicionamento no painel eletrônico. No Senado, no final de fevereiro, o placar final foi de 62 a 2. Na ocasião, o líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA), liberou os aliados de Lula a votar como quisessem e disse que não sabia se o presidente da República vetará o texto. Com a segurança pública no topo das preocupações da população, segundo pesquisa divulgada recentemente pela AtlasIntel, a conveniência política pode levar Lula — mesmo considerando a iniciativa uma espécie de “populismo penal” — a sancionar a restrição à saída temporária. O mandatário gostaria mesmo é de não lidar com pautas desse tipo, mas ele não terá descanso.
O Senado está prestes a aprovar uma proposta de emenda constitucional (PEC) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas. Assinada pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a PEC é uma reação a um julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) que caminha para descriminalizar o porte de pequena quantidade de maconha para consumo próprio. Além disso, é uma das apostas de Pacheco para se aproximar do eleitorado de Bolsonaro em Minas Gerais, onde o senador deve disputar o governo estadual em 2026. “A descriminalização leva à liberação do consumo, mas a droga continua ilícita. Você não vai encontrar ela em mercado. Você não vai encontrar ela em farmácia. Só existe o tráfico para poder adquirir. Portanto, descriminalizar é fortalecer o tráfico”, declarou o relator, senador Efraim Filho (União Brasil-PB), durante a votação na Comissão de Constituição e Justiça, na qual o texto também foi aprovado em votação simbólica.
Como determina o regimento, a PEC já está em discussão no plenário, onde o resultado da votação é uma barbada. Historicamente, o PT é simpático à descriminalização de certas drogas e alega por exemplo que, com base nas regras atuais, a polícia só prende usuários pobres e pretos, que, ao serem encarcerados, trocam a condição de usuários pela de mão de obra do crime organizado. O tema é polêmico, e Lula, de novo, não quer o governo envolvido no debate. Depois da última leva de pesquisas, finalmente caiu a ficha no Palácio do Planalto sobre o peso da pauta de costumes. Esse é um dos motivos pelos quais o presidente veta toda e qualquer iniciativa de flexibilização das regras de aborto legal. No fim de fevereiro, a equipe da ministra da Saúde, Nísia Trindade, divulgou uma nota técnica dizendo que não há limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei e, na prática, anulando uma decisão da gestão Bolsonaro que permitia o procedimento apenas até 21 semanas e seis dias de gestação. O caso logo foi usado como munição pelos bolsonaristas nas redes sociais, o que levou o ministério a suspender os efeitos da nota técnica sob a justificativa de que não havia sido analisada por “todas as esferas necessárias” e pela consultoria jurídica da pasta.
Foi uma tentativa de conter danos, sobretudo entre os evangélicos, segmento em que a reprovação ao trabalho de Lula passou de 52% em outubro de 2023 para 62% em fevereiro, segundo levantamento da Genial/Quaest. No eleitorado em geral, a reprovação saltou, no mesmo período, de 42% para 46%. Tendo como pano de fundo justamente a queda na popularidade, Lula realizou na segunda-feira 18 sua primeira reunião ministerial neste ano. No encontro, ficou patente a preocupação com o crescimento da rejeição entre os evangélicos. “Que a fé seja exercitada na mais plena liberdade das pessoas que queiram exercê-la. A gente não pode compreender a religião sendo manipulada da forma vil e baixa como está sendo neste país”, declarou o presidente. O discurso foi acompanhado de ação. No dia seguinte, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, anunciou que o governo fechou um acordo com líderes evangélicos para votar uma proposta de emenda constitucional que amplia a isenção tributária das igrejas.
Na reunião ministerial, também houve a constatação de que, como alertou José Dirceu, o bolsonarismo, ou a extrema direita, está ganhando a guerra de narrativas nas redes sociais, pegando carona em temas como criminalidade e drogas. Por isso, o presidente cobrou melhora na comunicação do governo, com a produção de peças segmentadas para públicos específicos. Em seus dois mandatos anteriores, Lula apostou em programas sociais e no que chama de crescimento com inclusão social. Deu certo. Ele deixou o Planalto, em 2010, como recordista de popularidade. Na época, o país não vivia um clima de polarização tão cristalizada e radicalizada como agora, e a pauta de costumes não tinha tanto peso. Hoje, o cenário é completamente diferente — e nele, como bem diz a ministra Simone Tebet, em entrevista às Páginas Amarelas desta edição, só a economia já não basta para garantir popularidade e sucesso eleitoral. O conservadorismo, apropriado pelo bolsonarismo, tornou-se definitivamente protagonista no debate político.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885