Em sua edição passada, VEJA revelou que o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro que assinou um acordo de colaboração premiada, acusou a Polícia Federal de distorcer suas informações, de tirar outras de contexto e até mesmo de omitir certos fatos para sustentar uma “narrativa” que, segundo ele, já estaria pronta. Em uma conversa gravada, o militar também fez pesadas críticas ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, responsável pelo inquérito que apura uma suposta trama golpista ocorrida no fim do governo passado. As inconfidências, feitas em uma longa conversa com um amigo, geraram uma enorme turbulência. O militar foi intimado a se explicar, justificou que era uma conversa privada, classificou o que dissera ao interlocutor como um desabafo, mas, por causa disso, acabou tendo a prisão decretada por obstrução da Justiça e por revelar a terceiros detalhes de sua colaboração, que é sigilosa. O estrago foi grande — especialmente para ele próprio.
Cid aceitou colaborar com a Polícia Federal em troca de um benefício que pode fazer muita diferença no futuro. Durante quatro anos, ele serviu como braço direito de Jair Bolsonaro. Testemunhou praticamente tudo de importante que aconteceu no governo. As informações que repassou aos investigadores revelaram vários episódios controversos e graves, principalmente aqueles ocorridos no fim de 2022, quando o ex-presidente, um grupo de assessores e militares de alta patente discutiram a possibilidade de anular as eleições e impedir a posse de Lula, sob o argumento de que as urnas teriam sido fraudadas. Uma das condições que Cid impôs para assinar o acordo foi que, em caso de uma condenação ao final do processo, sua pena não ultrapassaria dois anos de prisão. Essa cláusula temporal, aceita pelas autoridades, não foi obra do acaso. As preocupações do tenente-coronel e de outros quase vinte militares vão além de uma eventual punição criminal derivada dos inquéritos que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF).
O Código Militar estabelece que os oficiais condenados a mais de dois anos de prisão por qualquer crime sejam submetidos a uma espécie de julgamento moral, que avalia se eles têm ou não condições de continuar ostentando suas patentes, independentemente de serem da ativa ou da reserva. Valerá para todos que tenham conspirado contra a democracia — do tenente-coronel Mauro Cid ao capitão Jair Bolsonaro. O processo tramitará no Superior Tribunal Militar (STM), corte formada por 15 ministros, sendo dez oficiais-generais. Os juízes fazem um inventário da vida do acusado. Levam em conta a carreira na caserna, as missões, as condecorações e vão sopesar tudo com as acusações de golpe imputadas. Se considerarem que as condenações foram mais relevantes do que a carreira do investigado, os militares perderão a patente, as medalhas e o salário, que passará a seus beneficiários ou esposas, como se fossem “viúvas” do Estado. “É o mais grave revés que um militar pode sofrer, pior do que perder uma guerra”, diz o professor titular de História do Brasil da UFRJ Carlos Fico, estudioso da ditadura militar.
No caso de Bolsonaro, basta que ele receba um dia a mais que a pena mínima no crime de peculato, por exemplo, base da investigação que apura se o ex-presidente embolsou ilegalmente joias do Estado brasileiro, para que o STM seja provocado a analisar seu banimento da carreira militar. Na semana passada, o capitão se envolveu em nova polêmica após o jornal The New York Times ter revelado que ele passou dois dias na embaixada da Hungria, em Brasília, depois de ter tido o passaporte retido por ordem da Justiça. Ele explicou que foi uma visita de cortesia. Seus adversários vislumbraram um ensaio de fuga. O julgamento do STM, caso ocorra, também será um marco.
Embora tenha caráter essencialmente reputacional, a perda da patente por indignidade e incompatibilidade com o oficialato é considerada um divisor de águas em uma carreira que se sustenta em valores como obediência e disciplina. “Trata-se de declaração pública de que o ex-oficial foi desonroso, indecoroso, antiético ou incapaz de observar a disciplina, garantir a liderança ou cumprir seu dever. Esse tipo de processo é gravíssimo para um militar”, ressalta Fico, que diz não haver na história brasileira registros de que generais, como os hoje investigados no Supremo, tenham sido ameaçados com tamanha reprimenda.
Pode-se supor que a punição do STM será automática devido à gravidade de uma eventual condenação criminal dos militares por tentativa de golpe de Estado. Não é tão objetivo assim. O tribunal já considerou, por exemplo, que um tenente do Exército sentenciado a seis anos de prisão e réu confesso por homicídio poderia continuar na carreira porque agiu “sob o domínio de violenta emoção” ao atirar três vezes contra a esposa e matá-la. Ele cumpriu pena e depois voltou normalmente ao trabalho. O precedente, acredita-se, dificilmente seria replicado no caso de Bolsonaro e dos generais investigados. Nada, porém, pode ser considerado impossível nos dias atuais. Honra é um artigo raro.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886