O fogo no Pantanal volta a queimar a imagem do país
Em meio a uma seca histórica, a quantidade de incêndios no bioma quebrou recordes e o fogo avança sobre propriedades rurais sem previsão de chegar ao fim
Pela magnitude em biodiversidade e extensão, a Amazônia é a inquestionável vitrine para as políticas ambientais no país. Em contrapartida, de forma recorrente, as ameaças à floresta atraem críticas internacionais — inclusive da senadora Kamala Harris, a agora candidata a vice-presidente na chapa de Joe Biden na eleição dos Estados Unidos. Além da inevitável imagem nacional chamuscada, as consequências da devastação interferem nos outros ecossistemas. É o caso do Pantanal, a maior área úmida continental do mundo. O desflorestamento pode ser um fator que contribuiu para a diminuição das chuvas no bioma, que se estende no Brasil entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul: neste ano, houve um volume 50% menor de chuvas e o nível do Rio Paraguai, o principal formador do Pantanal, chegou à menor marca em cinco décadas. Ao contrário da Amazônia, o Pantanal pode, sim, ter incêndios naturais, mas não é a natureza que explica o aumento de 248% dos focos de calor.
De acordo com o analista de conservação da WWF Brasil, Cássio Bernardino, o Pantanal evoluiu com o fogo. Muitas das espécies vegetais têm características adaptadas para sobreviver ao calor, como folhas mais espessas e sementes que precisam das chamas para germinar. A típica paisagem pantaneira, de campos formados por gramíneas, favorece o processo de combustão espontâneo, desencadeado por raios. Contudo, dentro do ciclo dos fenômenos físico-químicos, as descargas elétricas são acompanhadas por gotas de chuva. “Os incêndios eram associados aos períodos chuvosos. Com a umidade, eles se propagariam lentamente até apagar. Hoje, vemos um desequilíbrio pela ação humana, que faz com que o fogo deixe de ser natural, é intencional”, diz Bernardino.
No período seco, o uso do fogo é tão perigoso que duas medidas entraram em vigor para tentar impedir o cenário caótico: a moratória federal contra o fogo na Amazônia e no Pantanal, publicada em 16 de julho, e um decreto estadual no Mato Grosso que torna ilegal as queimadas desde o dia 1º de julho. Fora do período proibitivo, a prática pode ser usada para limpar áreas de roça e de pastagens. No tempo seco, qualquer faísca pode dar início a um grande incêndio. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), dois municípios do Pantanal estão entre os cinco com maior número de alertas de calor: Corumbá, em Mato Grosso do Sul, é o líder nacional, com 3 918 alertas, e Poconé, em Mato Grosso, em quarto lugar, com 1 481 alertas. Desde janeiro, 1 milhão e meio de hectares foram queimados nos dois estados.
Em meio a esse fogaréu, a Fazenda São Francisco do Perigara, de quase 25 000 hectares, teve 35% de sua área queimada. Ela seria apenas mais uma se não fosse a relevância de seu conjunto de árvores cercadas, o equivalente a um quarteirão, com troncos altos e palmeiras, principalmente do tipo bocaiuva. Intocadas há sessenta anos, a combinação entre a vegetação e a disponibilidade de frutos fez com que o local se tornasse o maior refúgio e dormitório para as araras-azuis jovens, que ainda não se reproduzem, em todo o Pantanal. Entre 2013 e 2015, foram avistadas 1 000 delas no local, o maior registro do tipo já feito. Há uma equipe de brigadistas a postos, dia e noite, para evitar que o fogo avance. De acordo com a bióloga Neiva Guedes, que fundou o Instituto Arara Azul, os danos ainda são imensuráveis. “A vegetação pode se recuperar, mas não quer dizer que está tudo bem. As relações entre as espécies demoram muito mais tempo para se reconstruírem”, explicou.
Para evitar que o cenário se repita, o Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares (Ligabom) propôs um sistema integrado de proteção contra incêndios florestais. O primeiro documento, com onze propostas para a Amazônia, foi apresentado ao vice-presidente, general Hamilton Mourão, no comando do Conselho da Amazônia, e às presidências do Congresso Nacional. As sugestões vão desde melhorias estruturais, como a compra de aeronaves e helicópteros, até a abertura do mercado de combate a incêndios florestais para a iniciativa privada. Agora, o grupo está preparando uma versão para o Pantanal. De acordo com o secretário executivo do Comitê Estadual da Gestão do Fogo em Mato Grosso, o coronel bombeiro militar Paulo Barroso, o primordial é a prevenção. “Depois de certa dimensão, só podemos minimizar os danos”, diz.
Com relação a recursos, há uma diferença clara em comparação a outros países: em 2017, o Brasil investiu 6,16 reais por quilômetro quadrado para a temporada de incêndios, enquanto os Estados Unidos desembolsaram o equivalente a 1 959 reais. Sem prevenção, não há natureza que consiga controlar os exageros causados pela mão humana.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700