O ano de 2021 parece ter começado em março de 2020, quando a pandemia atropelou a vida, substancialmente ao mesmo tempo, de mais de 7 bilhões de pessoas. Não aconteceu o ritual de passagem — o réveillon de verdade — que ajuda a marcar a mudança. O real ponto de referência que alterou o espírito coletivo foi a incrível descoberta das vacinas. A virada do ano foi simbolizada, no Ocidente, pela primeira dose de Pfizer aplicada na Inglaterra. Renovavam-se ali as esperanças para um novo ano. Eis que, na esteira da grande luta da humanidade contra a Covid-19 e suas variantes, surgiu um fenômeno absolutamente assustador que será uma das marcas históricas, sem dúvida, do atípico ano de 2021. Me refiro ao surgimento de uma perigosa legião de irresponsáveis que, por escolha própria, decide não se vacinar e colocar todo o resto do planeta em risco. Obtusos como esses se contam aos milhões. Armados com argumentos do submundo da informação, tentam defender uma posição injustificável e seguem deixando seu rastro de destruição. Caso algum leitor se identifique com essa caracterização e se sinta ofendido por essa definição, por favor deixe de ler esta revista. Imediatamente e para sempre, pois jamais terá acolhida em nossas páginas.
O Brasil, nesse ponto, dá seu show no palco mundial. Palmas para o SUS, que torna a logística da imunização possível, mas os aplausos mais efusivos vão mesmo para o povo brasileiro, que, apesar de assolado por histórica carência educacional, não se deixou enganar pela balela suicida-homicida dos antivacina. Vimos em vários países grande parte do estoque de vacinas ficar parcialmente ociosa pela obstrução negacionista. Não no Brasil. O povo brasileiro honra o maior esforço científico da história oferecendo o ombro e carregando no âmago os anticorpos da vitória. Não se pode esquecer que o presidente da República aderiu ao conto do negacionismo e não se vacinou. Professou e ainda professa estultices sobre a vacina. Lamentável e inexplicável, essa postura colocou em risco a adesão em massa à imunização. Na prática, felizmente, foi quase que integralmente ignorada. Ao que parece, o chefe do Executivo não tem o poder de fazer com que pais arrisquem a vida dos seus filhos, e filhos a dos seus pais. Ainda bem.
Em meio a essa batalha no campo da saúde, o Brasil viveu em 2021 outra batalha no campo político-social. Viu suas jovens instituições democráticas desafiadas progressivamente ao longo do ano com diversos pretextos, culminando com desafios à autoridade da Corte Suprema e questionamentos quanto ao processo eleitoral. Ocorre que o Brasil opera institucionalmente ao amparo de uma Constituição desenhada em 1988 na esteira da dolorosa experiência dos anos de chumbo. As ferramentas de proteção estão todas ali, forjadas pelos que testemunharam a face mais sombria da ruptura democrática. As investidas antidemocráticas encontraram, nos poderes constituídos e nas organizações da sociedade civil (onde orgulhosamente VEJA se inclui), fileiras cerradas que impediam qualquer avanço contra o estado democrático de direito. Na capa e nas páginas desta revista, após o fatídico 7 de setembro de 2021, o presidente professou a cessação das agressões institucionais e reconheceu a validade do processo eleitoral. Desde então, o ano de 2021 caminha para um encerramento em notas mais pacíficas.
“De um ano em que precisou combater ao mesmo tempo a doença mortal e os desafios institucionais mais severos, o país emerge vacinado”
A institucionalidade brasileira deu também várias demonstrações de força, em paralelo a tensões centrais acerca do processo eleitoral. Houve a briga pelo equilíbrio fiscal, em que a regra-base do teto de gastos, embora não tenha saído ilesa, saiu estruturalmente vitoriosa. O interessante é que a maior despesa incluída nessa contenda era uma assistência aos mais pobres, que, apesar de tradicional bandeira da esquerda e da social-democracia, foi proposta pela direita e não enfrentou, no seu mérito, oposição. Há competência institucional quando um sistema político luta para definir como financiar a ajuda aos mais pobres e a ajuda em si desperta pouca polêmica.
Foi também em 2021 que retornou ao palco político o líder mais importante da esquerda brasileira, que se apresenta como alternativa em 2022. Ressurgiu reabilitado após revelações de impropriedades no devido processo legal que tornaram sua condenação juridicamente inválida. Enxerga-se aí outra vitória institucional, do devido processo legal. É polêmica conhecida a inocência (ou não) de Lula, mas nunca pode ser controversa a necessidade de anular decisões judiciais em violação ao devido processo legal. Maculado pela anulação de suas decisões, Sergio Moro adentra a política levando ao crivo popular suas ideias e visão de prioridades para o país. Pleiteia também o cargo o governador João Doria, armado com grandes conquistas administrativas e com o mérito de ter acelerado o caminho da vacinação no Brasil. Ciro Gomes, Simone Tebet e Rodrigo Pacheco ampliam as escolhas do eleitorado.
De um ano em que precisou combater ao mesmo tempo a doença mortal e os desafios institucionais mais severos dos últimos tempos, o Brasil emerge vacinado, com suas instituições democráticas firmes e se preparando para o exercício do seu direito de voto com um rol de candidatos diverso e cheio de características fortes. Que venha 2022.
Fabio Carvalho é publisher, CEO e acionista da Editora Abril, que edita VEJA
Publicado em VEJA de 29 de dezembro de 2021, edição nº 2770