Na campanha presidencial, já havia sinais de que Rosângela da Silva, a Janja, pouco ou quase nada tinha a ver com o estereótipo tradicionalmente reservado às primeiras-damas. Sem se importar com os olhares desconfiados de alguns petistas, especialmente os mais antigos, participava de reuniões, discutia estratégias, dava palpites na comunicação, revisava discursos e cuidava da agenda do candidato. Nos comícios, debates e aparições públicas, funcionava como uma redoma que evitava a aproximação de figuras indesejadas, especialmente as que poderiam criar algum tipo de constrangimento ao marido. Depois da vitória, continuou participando das discussões políticas, mas passou também a distribuir tarefas, enfileirar ordens, escolher e vetar nomes para a futura equipe de governo. Nesse período, não foram poucas as descomposturas que ela dirigiu a figurões do PT – algumas extremamente duras. Numa das raras entrevistas que concedeu, disse que queria “ressignificar” o papel da primeira-dama – e está conseguindo.
O protagonismo e a desenvoltura de Janja nos nove primeiros meses de governo já permitem, sem qualquer exagero, colocá-la numa posição de destaque entre as primeiras-damas da história brasileira. Ela não é a mais jovem (Rosane Collor tinha 25 anos), não é a que exibe o currículo acadêmico mais pomposo (Ruth Cardoso era doutora em antropologia), não investe na política da discrição (Marcela Temer não era de dar entrevistas e quase não aparecia em público) e jura que não tem ambições políticas (Michelle Bolsonaro é pré-candidata às eleições de 2026). Mas, por outro lado, Janja tem opinião, é impetuosa, defende com firmeza algumas boas causas e não se intimida com as críticas. Em tempos de empoderamento feminino, isso faz toda a diferença. “Sempre sonhei estar aqui”, discursou a primeira-dama no palco da Marcha das Margaridas, evento realizado em agosto em Brasília.
Nos últimos dias, ela, que é filiada ao PT há trinta anos, esteve novamente sob holofotes, ao liderar uma comitiva de ministros que foi ao Rio Grande do Sul para inspecionar áreas atingidas por enchentes. A tragédia deixou cinquenta mortos e milhares de desabrigados. Em situações assim, é praxe o governante prestar solidariedade às vítimas, prometer ajuda, liberar recursos. Lula nem sequer visitou a região, o que gerou uma onda de críticas ao governo. Janja foi escalada para a missão. No estado, ela seguiu o roteiro tradicional: percorreu os municípios atingidos, distribuiu alimentos e posou para fotos ao lado dos flagelados. “Desde que aconteceu esse evento, tenho trabalhado para que parte desses recursos viesse para cá para ajudar essas famílias. Então eu vim aqui hoje muito por causa disso, para poder abraçar vocês e entregar (as cestas básicas)”, disse ela a uma mulher grávida. Em outro diálogo — todos divulgados em uma rede social da primeira-dama que conta com mais de 1 milhão de seguidores — ela promete a um grupo de moradores: “Vamos recuperar tudo”.
A expedição se transformou em um embate judicial depois que a oposição ingressou com uma ação no Ministério Público Federal alegando que houve usurpação de função pública durante a viagem e que causa “preocupação” o fato de Janja assumir a agenda presidencial. “Eu não posso permitir, que, do ponto de vista constitucional ou legal, alguém que não tem competência exerça o poder. Imagine que ela faça, fale ou prometa algo errado ou proibido. Ela não pode ser responsabilizada. O Congresso tem a prerrogativa de fiscalizar, mas a ação dela é nula diante de mim, que sou deputado e não posso fazer essa fiscalização”, afirma o deputado Evair de Melo (PP-ES), autor do pedido de investigação. A medida tende a dar em nada, mas demonstra que o ativismo da primeira-dama, no mínimo, incomoda a oposição.
A bem da verdade, esse estranhamento é ainda mais amplo. “Janja está quebrando o estereótipo de mulher restrita ao âmbito privado”, diz a doutora em história Dayanny Leite Rodrigues. “Ela incomoda a direita, a esquerda, a situação e a oposição porque está enraizado no imaginário popular e na cultura política brasileira que este não é papel de uma primeira-dama.” O incômodo, aliás, não é de agora e, como ressalta a pesquisadora, não se restringe à oposição. Nestes primeiros nove meses de governo, Janja tem participado de praticamente todas as viagens internacionais do marido — ao todo, já visitou dezessete países ao lado do presidente. No exterior, seu comportamento, muitas vezes espontâneo e distante da liturgia e dos protocolos oficiais, chama atenção.
Exemplo disso ocorreu em fevereiro, quando uma foto dela posicionada de maneira insólita entre Lula e o presidente Joe Biden, durante uma viagem aos Estados Unidos, viralizou e ganhou memes nas redes sociais. No mês passado, ao desembarcar na Índia, ela publicou um vídeo, sorridente, no qual dizia: “Me segura, que eu já vou sair dançando”. O gracejo, feito no momento em que as famílias gaúchas sofriam com a enchentes, pegou mal. Dias depois, nova controvérsia, dessa vez nos Estados Unidos, onde ela foi a única primeira-dama a participar das reuniões do G20, ocorridas a portas fechadas e da qual participam tradicionalmente apenas chefes de Estado. “Janja, pela personalidade, momento histórico e disposição da oposição para confrontá-la, com seu comportamento, joga luz sobre o papel das mulheres que estão na arena pública”, destaca a advogada mestre em direito do Estado Maís Moreno.
O debate sobre a atuação das primeiras-damas não acontece apenas no Brasil. A pesquisadora analisou o papel das mulheres de chefes de Estado em quinze países e concluiu que, em geral, não existem regras claras, o que dá margem a muita confusão. No Chile, o esquerdista Gabriel Boric, ao tomar posse, centralizou as políticas públicas em uma pasta criada e batizada com o nome da esposa. A oposição, evidentemente, protestou. A repercussão obrigou o presidente a renomear o gabinete e, na sequência, a própria primeira-dama decidiu renunciar ao cargo. Anos atrás, o presidente da França, Emmanuel Macron, criou o “Estatuto da Esposa do Chefe de Estado”, mas também foi obrigado a recuar depois de reações negativas. Nos Estados Unidos, as funções da primeira-dama estão regulamentadas desde 1978. “É um desafio global e dos tempos modernos traçar essas balizas. O Brasil poderia assumir esse protagonismo”, diz Moreno. Sem qualquer delimitação, Janja tem gabinete no 3º andar Palácio do Planalto, vizinho ao do presidente, uma equipe de assessores, seguranças à sua disposição e uma agenda cheia.
Não por acaso, recentemente, candidatos à futura vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) buscaram se aproximar da primeira-dama na expectativa de que ela, defensora da indicação de uma juíza negra ao STF, interferisse a favor. “Ela pode não ter a palavra final, mas tem o poder de viabilizar um nome”, diz um dos postulantes ao cargo. A primeira-dama tem muita influência, é verdade, mas não vence todas as batalhas. A defesa de uma maior participação feminina no governo, ao menos por enquanto, não tem produzido os resultados que ela gostaria. Ainda na campanha, Janja disse que, caso Lula vencesse a eleição, se dedicaria a trabalhar pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e se inspirava em Evita Perón, a icônica ex-primeira-dama argentina, alvo até hoje de devoção. No governo, Janja perdeu a briga para manter Ana Moser à frente do Ministério do Esporte, substituída por André Fufuca, representante do Centrão. As presidências da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, ambas ocupadas por mulheres, também estão na mira dos partidos que integram a base aliada do governo, o que tem gerado certas especulações sobre a verdadeira dimensão do poder da primeira-dama.
Entre interlocutores da velha guarda do PT há quem veja estratégia e método na decisão de Lula em alimentar o empoderamento da primeira-dama e, ao mesmo tempo, emitir sinais na direção contrária. A tática estaria ligada às eleições de 2026. Ao deixar prosperar boatos de que Janja está sendo testada como alternativa à sua sucessão, o presidente impediria que ministros com ambições eleitorais maiores tentem lhe fazer sombra nos próximos três anos. “Lula sabe que há potenciais candidatos no governo, sabe também que fragiliza essas pessoas ao dar espaço a Janja”, diz um petista com acesso ao Planalto. Os aliados dão como certo que Lula pretende disputar a reeleição, apesar da idade avançada.
Na semana passada, o presidente se submeteu a uma cirurgia para a colocação de uma prótese no fêmur. Por orientação médica, está em repouso absoluto no Alvorada e não recebe ninguém. Por isso, ministros, parlamentares e correligionários que precisam falar com o petista passam antes pelo crivo da primeira-dama. Com raríssimas exceções, todos tiveram que antecipar o assunto que seria tratado antes de ter a ligação transferida. Em outros tempos, esse protocolo seria recebido com absoluta naturalidade. Afinal, o presidente tem 77 anos. O problema é que nem todo mundo entendeu assim, principalmente aqueles que não conseguiram falar com Lula. Culpam Janja, é claro — mas ninguém tem coragem de dizer isso a ela. Melhor não provocar.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862