A existência de uma pasta com documentos inéditos que pertenceram a João Gilberto, revelada na edição dessa semana de VEJA, surpreendeu até os próprios herdeiros do criador da Bossa Nova. Os três filhos do músico – o produtor João Marcelo, a cantora Bebel Gilberto e a adolescente Luisa Carolina – não tinham conhecimento da papelada que abarca cartas, recibos, setlist de shows, anotações de próprio punho, entre outros registros que desvelam o cotidiano do gênio recluso. E, mais: sequer sabiam que essas preciosidades estavam de posse de Gustavo Carvalho Miranda, ex-advogado de João Marcelo, que se aproximou do artista e freqüentou o famoso apartamento no Leblon, em seus últimos quatro meses de vida – João Giberto morreu em 6 de julho de 2019. Nessa sexta-feira, 26, os herdeiros enviaram uma notificação extra-judicial a Miranda solicitando que ele devolva imediatamente a pasta ao espólio do cantor, sob pena de responder por apropriação indébita, além de ser passível de ações nas esferas administrativa, cível e criminal.
O documento conta com a assinatura de três advogados – Deborah Sztajnberg, que agora defende os interesses do primogênito; José Marco Tayah, de Bebel Gilberto, e Leonardo Amarante, da caçula, nascida da relação com Cláudia Faissol –, e Silvia Gandelman, nomeada pela Justiça inventariante de João Gilberto. “Levamos um susto com essa história. Os filhos ficaram horrorizados e revoltados com o que esse rapaz fez. Ele (Miranda) jamais poderia ter ficado com um bem de uma pessoa interditada judicialmente”, ressalta Deborah. Num drama que se tornou público, no final de 2017, Bebel, que morou por muito tempo em Nova York, entrou com uma ação de curatela (interdição) após encontrar o mestre maior da Bossa Nova vivendo em situação de penúria – havia sofrido três ações de despejo por inadimplência – e num ambiente sujo e degradante. De acordo com o relato do ex-advogado de João Marcelo, ele ganhou a pasta recheada de documentos de presente de João Gilberto quatro dias antes de ele morrer e na mesma data o acompanhou para uma perícia neurológica em uma clínica na Zona Sul do Rio.
Na notificação enviada por e-mail e que após o feriado prolongado em função do avanço da Covid-19 seguirá os trâmites legais, via cartório, a defesa dos herdeiros enumera uma série irregularidades. As primeiras e mais gritante delas, ressalta a atual advogada de João Marcelo, dizem respeito ao fato de o músico, interditado naquele momento por não dispor de pleno uso de suas faculdades mentais, não poder alienar (trocar, doar e vender) nada que lhe pertencesse. Qualquer coisa, por lei, dependia do aval da curadora, no caso Bebel Gilberto, e do juiz responsável pelo processo. Outro ponto que chamou a atenção dos advogados foi o fato de Miranda ter omitido estar de posse da pasta do criador da Bossa Nova durante mais de um ano, informação que só se tornou pública com a reportagem. “É inaceitável e no mínimo estranho o que essa pessoa fez, ainda mais se tratando de um advogado, que em tese conhece a lei”, afirma Deborah. Os herdeiros também ficaram incomodados por Miranda ter saído com o músico – para a perícia médica e um restaurante às vésperas de sua morte – sem conhecimento da família e tê-lo exposto em fotos.
Na pasta preta, ainda em poder do ex-advogado de João Marcelo, estão, entre outras raridades, uma carta dos escritores Jorge Amado e Zélia Gattai para “o filho Joãozinho”, como chamavam o cantor; faxes para grandes empresários mundiais com seu autógrafo – raridade em se tratando do artista ermitão –; roteiros de grandes concertos e até contabilidade de shows com os valores dos cachês. A defesa dos herdeiros alega que este “baú da Bossa Nova” pertence única e exclusivamente a eles. E que seu destino ainda será decidido.
O ex-advogado de João Marcelo, durante entrevista a VEJA, afirmou que conviveu com João Gilberto em seus quatro últimos meses de vida e que “ele estava lúcido, mas tinha lapsos, como qualquer pessoa de idade”. Na reportagem, afirma que não pretendia entregar o material à família dele “na qual ninguém se entende”. Dizia, ainda, que o pai da Bossa Nova havia desenvolvido um grande carinho por ele, embora num curto período de tempo. E que no dia 13 de junho de 2019, menos de um mês antes da morte do cantor, conseguiu o direto de representá-lo judicialmente no caso da interdição e que, para isso, contava com uma procuração de João Gilberto. Hoje, um dia após ser notificado extra-judicialmente, Miranda diz não querer briga com ninguém e que devolverá tudo ao espólio do artista. “Fiquei mais tranqüilo ao saber que agora os advogados e os filhos do João estão unidos para que seja feito o melhor pela obra dele. Tinha receio que o material fosse perdido, danificado ou vendido”, justificou.