Na corrida presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva demonstrou especial preocupação quanto à interlocução de sua campanha junto ao agronegócio. Nos recados enviados ao setor, o petista buscava afiançar aos empresários da área que eles não seriam alvo de qualquer retaliação, pelo contrário: seriam muito bem tratados, no que se evocava como lembrança de seus dois primeiros mandatos, quando o setor experimentou um salto no volume de crédito para financiamentos e viu suas exportações explodirem no “boom de commodities”. Quando questionado sobre as relações históricas e notórias do PT com o MST, Lula minimizava o risco de invasões no campo e retrucava dizendo que o movimento havia mudado o foco, concentrando forças no desenvolvimento da agricultura orgânica.
As promessas e discursos de pacificação do presidente durante a campanha tiveram suas primeiras provas de fogo logo nos primeiros meses da nova gestão — e o saldo não foi bom. As invasões do MST a áreas da Embrapa, sedes do Incra e terras produtivas da Suzano na Bahia e no Espírito Santo, além da presença de João Pedro Stédile, líder do movimento, na comitiva de Lula em viagem à China, elevaram em alguns graus a desconfiança e os temores do agronegócio. “O governo sabe que o agro apoiou Bolsonaro, mas tivemos eleições e a vida segue. Claro que os produtores continuam com certa resistência, por causa das invasões”, diz a senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura que recentemente teve uma fazenda sua invadida em Terenos (MS). O MST negou participação no caso. O exemplo mais recente da polarização política no campo veio durante a Agrishow, principal evento do agronegócio no país, em Ribeirão Preto (SP). O ministro da Agricultura de Lula, Carlos Fávaro, disse ter sido desconvidado pelos organizadores a participar da abertura da feira. O motivo seria a ida de Jair Bolsonaro, levado a tiracolo pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Diante do mal-estar provocado pela ligação do presidente da Agrishow, Francisco Matturro, ao ministro, a tradicional abertura foi cancelada, mas Bolsonaro compareceu mesmo assim à cidade. Cercado de apoiadores, discursou e posou para fotos com Tarcísio. Em reação, o governo ameaçou cancelar o patrocínio do Banco do Brasil à Agrishow.
Um dos fatores que explicam a difícil relação entre Lula e o agronegócio reside na complicada tentativa de se equilibrar entre o respeito ao compromisso histórico do PT com o MST e os interesses e necessidades da locomotiva do PIB do país. Declarações de algumas lideranças ruralistas mostram o grau de descontentamento. “O governo tem os invasores como seus aliados, o próprio presidente usa o boné deles”, diz Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. “Estão invadindo área de plantação de celulose, fazendas produtivas. Isso é crime e o governo precisa combater, não pode ser cúmplice”, critica Jacyr Costa Filho, Presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp.
No meio desse fogo cruzado encontra-se o ministro da Agricultura, um ex-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso. Diante de pressões ruralistas para que tomasse posição, Fávaro chegou a comparar as recentes invasões de terras com os atos golpistas de 8 de janeiro. A declaração não pegou bem nos bastidores do governo e coube ao titular da pasta do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, assumir o papel de bombeiro. Em entrevista ao programa Amarelas On Air, de VEJA, ele disse que a crise provocada pelas recentes incursões do MST estava superada e atribuiu as trombadas a uma “dessintonia” entre o movimento e o novo governo.
A despeito desse tipo de esforço, a percepção entre ruralistas e especialistas é a de que não há tantos motivos para otimismo, em especial pela avaliação de que Fávaro tem a atuação limitada pelos compromissos e a visão da gestão petista sobre o campo. “O ministro está fazendo um esforço grande, mas o governo, como um todo, não”, afirma Roberto Rodrigues, professor emérito da FGV e ex-ministro da Agricultura no primeiro mandato de Lula. Rodrigues aponta que grande parte da atuação do ministério depende de outras áreas — como Itamaraty, Infraestrutura e Indústria e Comércio —, o que acaba, muitas vezes, dificultando a articulação de medidas. Para o economista José Roberto Mendonça de Barros, o aceno do governo ao MST suscitou críticas de um setor que, até então, teria poucos motivos para se queixar. “Fizeram de tal maneira que parece feito por inimigos do governo, e não por gente de dentro”, diz.
Adversários já não faltam, considerando-se que os bolsões do agro reúnem a mais sólida base de apoio a Bolsonaro. O resultado ficou nítido nas urnas: em 2022, o ex-presidente venceu Lula em oito dos dez principais municípios produtores. Não à toa, os ruralistas também lideram a lista de doadores do capitão: entre os mais “generosos” estão produtores de soja, milho e algodão de Mato Grosso. O que explica o “racha”, diz Mendonça de Barros, é a oposição entre dois grupos dentro do setor — um mais “envolvido em si mesmo”, e outro que entende que precisa trabalhar com o mundo inteiro. “Esse segundo grupo sabe que tem que se relacionar com o governo, que é institucional, e que não é porque é de direita ou de esquerda que você vai deixar de se ligar a ele”, afirma. O economista reconhece que é sabido que uma parte “ruidosa” dos produtores adotou o bolsonarismo, mas avalia que o episódio da Agrishow foi um “espanto”. “As lideranças agrícolas colocaram divergências políticas à frente do interesse do setor, o que não é comum”, afirma.
Alguns dos fatores que geram preocupação entre interlocutores do agronegócio são a retomada da agenda de demarcações de terras indígenas pelo governo Lula e o novo plano de reforma agrária, que deve ser anunciado neste mês. Segundo o ministro Paulo Teixeira, o projeto vai contar com terras já arrecadadas pelos governos Lula e Dilma Rousseff para reforma agrária, mas que não foram distribuídas nos governos Temer e Bolsonaro. “São áreas não destinadas à reforma por uma visão marcadamente ideológica daqueles que não cumpriram a Constituição”, diz Teixeira. De acordo com o ministro, o plano que será divulgado por Lula estava previsto para abril, mas o contexto conturbado postergou o anúncio para maio. Em paralelo a isso, deve aumentar a polarização com a criação da CPI do MST na Câmara, cujos trabalhos devem começar em breve — ao que tudo indica, sob comando de deputados bolsonaristas. A briga promete ser dura na comissão: a oposição pretende investigar fontes de financiamento do movimento e o PT está mobilizado para defender os sem-terra. “Nossa bancada agirá para que a CPI não vire uma palhaçada”, diz o líder petista na Câmara, Zeca Dirceu (PR). Para além das invasões de terra, outra queixa do agro ao tratamento dado ao MST pelo governo é que há um “destrato” ao setor responsável por produzir em larga escala, em detrimento de um grupo pequeno. Para efeito de comparação, no ano passado a produção de arroz pelas famílias distribuídas em assentamentos foi de 16 250 toneladas — a estimativa é que o Brasil colha 9,85 milhões de toneladas do grão apenas neste ano.
Nos últimos dias, na esteira das polêmicas da Agrishow e dos sem-terra, os ministros Carlos Fávaro e Paulo Teixeira tentaram colocar panos quentes e demonstrar que o descontentamento mais extremo com o governo se limita a alguns setores do agro. O diálogo tem sido positivo, segundo auxiliares de Fávaro, com entidades como a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). Na última terça, 2, Fávaro participou de uma reunião com a Frente Parlamentar da Agropecuária, em Brasília, onde, conforme interlocutores do encontro, novamente criticou as invasões e mostrou apoio a demandas do agro, como a busca por viabilizar 25 bilhões de reais para subvenção às operações de crédito rural do Plano Agrícola e Pecuário, por meio da equalização de taxas de juros dos financiamentos.
Fávaro também tem defendido que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), transferida à pasta do Desenvolvimento Agrário, volte à Agricultura, uma demanda dos produtores. Em outra frente, o ministério e o BNDES anunciaram uma linha de crédito em dólar para compras de máquinas. “O agricultor não é politizado a ponto de atrapalhar o negócio dele. Essa poeira vai se desmanchar e as coisas voltarão ao normal”, confia Carlos Ernesto Augustin, conhecido como Teti, assessor especial do ministro da Agricultura e um dos maiores produtores de sementes de soja do país. Apesar desse tipo de avaliação, caso não ocorram correções de rota capazes de ir além dos discursos, é pouco provável que não estourem novas crises nesse campo minado formado por interesses difíceis de conciliar e tão distantes no terreno ideológico. É essencial concentrar esforços para trazer paz a um setor cada vez mais essencial à economia do país.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840