O Brasil continua atrasado na vacinação contra a Covid-19. Até agora, apenas 3% da população foi vacinada, enquanto o porcentual é de cerca de 80% em Israel, 25% no Reino Unido e 12% no Chile. Algumas capitais, como Rio de Janeiro e Salvador, chegaram a suspender a imunização por falta de vacinas. O quadro é tão preocupante que o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou estados e municípios a comprar imunizantes caso o governo federal descumpra o plano nacional de imunização ou fracasse no atendimento à determinada região. O STF chegou a esse entendimento na terça-feira 23, no mesmo dia em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o registro definitivo do fármaco produzido pela Pfizer contra o novo coronavírus. A decisão da Anvisa seria um boa nova não fosse um detalhe: o Ministério da Saúde não fechou contrato com a Pfizer para a aquisição de doses por discordar de uma cláusula contratual que prevê a responsabilização do governo brasileiro — e não da empresa — por eventuais efeitos colaterais decorrentes da aplicação do produto. O ministério alega que está zelando pelos interesses do país e dos brasileiros. O problema é que esse rigor não é regra em todos os negócios da pasta.
Doses da Vacina contra Covid-19
No último dia 19, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, fechou um contrato de compra de 20 milhões de doses da vacina Covaxin com a empresa Precisa Comercialização de Medicamentos Ltda, que representa no Brasil o laboratório indiano Bharat Biotech, fabricante do imunizante. O contrato foi firmado sem licitação por 1,6 bilhão de reais. Pelo menos três pontos chamam a atenção nessa parceria. Primeiro: a Covaxin ainda está na terceira fase de testes na Índia e não tem autorização para uso no Brasil. Segundo: o preço de cada dose é mais alto do que o de outros fármacos, inclusive daqueles que já têm autorização da Anvisa para ser aplicados no país. Cada dose de Covaxin custará ao governo brasileiro 14,9 dólares. No contrato do Butantan com o Ministério da Saúde, assinado em janeiro, a dose da CoronaVac saiu por 10 dólares. Já no primeiro lote de 2 milhões de vacinas da AstraZeneca importadas pela Fiocruz o preço foi de 5 dólares a dose. O terceiro ponto é o mais preocupante. A Precisa Comercialização de Medicamentos tem um histórico recente de problemas com fornecimento de materiais na área de saúde e está no centro de um escândalo de corrupção.
Testes de Covid-19
A empresa vendeu testes de Covid-19 superfaturados ao governo do Distrito Federal após uma licitação fraudada, na qual foi a maior beneficiária, segundo investigações em curso. Em razão disso, é investigada como participante de uma organização criminosa e deverá ser denunciada ainda neste ano. A fraude foi descoberta pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Distrito Federal a partir da análise, entre outros, de mensagens de celulares de autoridades da Secretaria de Saúde do DF. No dia 2 de abril do ano passado, o então secretário de Saúde, Francisco Araújo Filho, que acabou preso, repassou para o subsecretário Eduardo Pojo uma proposta de venda de testes de Covid-19 da Precisa. Pojo informou que a licitação já estava encerrada e que a empresa não havia apresentado proposta. Francisco Araújo não se deu por vencido e voltou à carga um dia depois: “Pojo, não anuncie ganhador no processo de teste sem antes falar comigo. Amanhã cedo falamos. Boa noite”. Após a troca de mensagens, a secretaria abriu novo prazo para receber propostas. A Precisa foi incluída na licitação e depois declarada vencedora, mesmo sem ter apresentado o menor preço.
A empresa ofereceu 300 000 testes de coronavírus por 125 reais cada um, somando 38,4 milhões de reais. O preço de uma concorrente, segundo o MP, era de 75 reais por teste. A Precisa entregou 150 000 testes à Secretaria de Saúde do DF em 12 de maio de 2020. Segundo o MP, o produto era diferente do acordado: “Em mais uma manobra fraudulenta, os integrantes da organização criminosa, em conluio com as empresas beneficiadas, permitiram que a Secretaria da Saúde recebesse material diverso do contratado”. Em julho passado, em razão da investigação, a Justiça de Brasília decretou o bloqueio dos pagamentos do governo local à Precisa e outras duas empresas.
A VEJA, o Gaeco informou que as investigações sobre essas firmas e seus representantes continuam e que há “provas contundentes” de crimes como fraude à licitação, lavagem de dinheiro, organização criminosa, além de corrupção ativa e passiva. Já a Precisa negou qualquer irregularidade e disse confiar que a Justiça desbloqueará os valores. Sobre a negociação com o Ministério da Saúde, a empresa afirmou que não está impedida de fechar contratos com o setor público, tanto que já recebeu mais de 60 milhões de reais da pasta para aquisição e distribuição de insumos destinados à prevenção e ao controle de doenças sexualmente transmissíveis. Quando a corrida mundial pela vacina começou, o presidente Bolsonaro disse que cabia às empresas procurar o governo para tentar vender seus produtos. Esse desatino colocou o Brasil na rabeira da imunização. Até nesse quesito a Precisa deu sorte. A VEJA, a empresa assegurou que partiu do ministério a iniciativa de contratar os seus serviços.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727