O ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega era considerado peça-chave para o esclarecimento de dois casos emblemáticos: a expansão das milícias no Rio de Janeiro, muitas vezes com a ajuda clandestina de autoridades públicas, e o esquema de rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador da República. No domingo 9 de fevereiro, depois de mais de um ano foragido, Adriano foi morto por policiais da Bahia, que descobriram o seu paradeiro com a ajuda da equipe de inteligência da polícia fluminense. Segundo a versão oficial, ele reagiu a uma ordem de prisão e morreu após uma troca de tiros. Sua família pretendia cremar seu corpo já na quarta-feira 12, mas a Justiça proibiu. Foi uma decisão providencial, já que emergiram severas dúvidas sobre os reais objetivos da operação policial, especialmente depois que se soube que dela participaram cerca de setenta homens equipados com fuzis, carabinas, pistolas, revólveres, espingardas, bombas de gás, drones, coletes e escudos à prova de bala — aparato que conseguiu cercar o ex-capitão em seu esconderijo, sozinho, seminu, supostamente armado apenas com uma pistola e, ainda assim, foi incapaz de prendê-lo. Incompetência ou queima de arquivo?
VEJA teve acesso a imagens que revelam que Adriano da Nóbrega foi abatido com tiros disparados a curta distância. As imagens reforçam a acusação feita por sua esposa e por seu advogado de que ele foi executado — e de que as forças policiais nunca quiseram realmente prendê-lo. São fotografias de diversos ângulos, feitas logo depois da autópsia, que devem ajudar a revelar o que aconteceu nos minutos que se sucederam à entrada dos policiais no sítio onde o ex-capitão estava escondido, no município de Esplanada. De acordo com a Secretaria de Segurança da Bahia, Adriano, depois de reagir, foi abatido com dois tiros — um de carabina e outro de fuzil. Um dos projéteis atingiu a região do pescoço. O outro perfurou o tórax. Também de acordo com a polícia baiana, mesmo atingido e tendo perdido muito sangue, o ex-capitão ainda estava vivo quando foi levado para o hospital, a 8 quilômetros do local do confronto, onde chegou morto. As fotos obtidas pela reportagem sustentam parte dessa versão — mas apenas parte. Os disparos que mataram Adriano da Nóbrega foram feitos a curta distância. Além disso, as imagens revelam um ferimento na cabeça do ex-capitão, logo abaixo do queixo, queimaduras do lado esquerdo do peito e um corte na testa.
Obtidas com exclusividade, as fotos que ilustram esta reportagem foram submetidas à avaliação do médico legista Malthus Fonseca Galvão, professor da Universidade de Brasília (UnB) e ex-diretor do Instituto Médico Legal do Distrito Federal. Ele debruçou-se sobre o material sem saber a identidade do morto. Depois de ressaltar que o ideal seria estudar o próprio corpo e ter conhecimento das armas usadas na operação policial, Galvão citou alguns pontos que lhe chamaram a atenção. O primeiro são as marcas vermelhas localizadas próximas da região do peito, chamadas pelos peritos de “tatuagem”, que indicariam um tiro a curta distância. “É um disparo a uma distância na qual a pólvora ainda tem energia cinética suficiente para adentrar o corpo. Então, foi um disparo a curta distância. O que é a curta distância? Depende da arma e da munição. Seriam 40 centímetros, no máximo, imaginando um revólver ou uma pistola. Mais que isso, não”, declarou Galvão. E acrescentou: “Pode ter sido uma troca de tiros? Pode. Pode ter sido uma execução? Pode. Qual é o mais provável? Com esse disparo tão próximo, o mais provável é que tenha sido uma execução. Mas tem de analisar com mais detalhes”.
O segundo ponto destacado pelo médico legista é uma marca que aparenta ser um tiro na região do pescoço. “Pode ter sido um disparo após a vítima ter caído no chão, porque a imagem me sugere ser de baixo para cima, da direita para a esquerda, em quase 45 graus. Esse disparo pode ser o que o povo chama de ‘confere’”, afirmou. Confere é o famoso tiro de misericórdia, efetuado quando não há a intenção de salvar a pessoa baleada. Galvão também destacou uma marca cilíndrica cravada no peito do corpo. “Tem muita chance de ser a boca de um cano longo após o disparo, quente, sendo encostada com bastante força por mais de uma vez. Nesse momento, ele estava vivo, com certeza, porque está vermelho em volta. É uma reação vital.” O professor observou ainda que o ferimento na cabeça poderia ser um corte provocado por um facão, um machado ou um choque com a quina de uma mesa. Pessoas próximas a Adriano da Nóbrega dizem que ele foi torturado. O machucado na cabeça, por exemplo, teria sido resultado de uma coronhada de pistola.
Sob a proteção do anonimato, outro especialista em medicina legal apontou como possível sinal de execução o disparo na lateral do corpo do ex-capitão do Bope, provavelmente feito quando ele estava com os braços erguidos, em sinal de rendição. Para esse perito, se tivesse havido troca de tiros, tal contusão teria de ser acompanhada de ferimentos também no braço esquerdo. Ele ainda observou que um dos disparos — no pescoço, abaixo da mandíbula — deve ter sido feito a curtíssima distância. Coisa de 15 centímetros. Assim como seu colega da UnB, o especialista ressalvou que o ideal seria fazer uma análise no corpo. Familiares e conhecidos de Adriano estão certos de que houve execução. “Ele me ligou e disse que não adiantaria se entregar porque ninguém queria a sua prisão, mas sim a sua morte”, disse a VEJA o advogado Paulo Emílio Catta Preta, que defendia o ex-capitão na Justiça. No domingo 2 de fevereiro, uma semana antes da ação policial que resultou na morte de Adriano da Nóbrega, a esposa dele, Júlia Mello Lotufo, declarou a VEJA que ele seria assassinado. “Meu marido foi envolvido numa conspiração armada pelo governador do Rio, Wilson Witzel, que queria matar o Adriano como queima de arquivo.”
Na quinta-feira, a polícia baiana divulgou uma parte do laudo do exame do corpo de Adriano, produzido pelo Departamento de Polícia Técnica de Alagoinhas, apontando que ele morreu às 8h10 em “consequência de disparos de arma de fogo”. De acordo com os peritos, foram encontradas marcas de dois tiros, que atingiram o pescoço, o pulmão e o coração, causando a morte do ex-capitão por “anemia aguda secundário à politraumatismo por instrumento de ação pérfuro-contundente”. Um dos quesitos do laudo chama a atenção. Pergunta-se se houve emprego, entre outras coisas, de tortura ou algum meio cruel que pudesse ter levado à morte Adriano da Nóbrega. O perito responde que “não tem como afirmar ou negar”. VEJA submeteu o documento a um especialista, que apontou uma série de lacunas técnicas. Além de ter descrições genéricas, o material carece de informações mais precisas, por exemplo, a descrição e a possível natureza da lesão na cabeça da vítima. Para o médico legista Malthus Fonseca Galvão, também é curioso o fato de não ter sido encontrado o segundo projétil, que poderia definir, a partir de ensaios balísticos, a distância precisa entre os policiais e o ex-capitão e a posição dos atiradores e da vítima no momento dos disparos.
As autoridades, evidentemente, rechaçam as suspeitas de que houve alguma quebra de procedimento. Segundo o secretário de Segurança da Bahia, Maurício Teles Barbosa, Adriano só foi morto porque se recusou a se entregar e disparou contra os policiais. “Ele já chegou atirando. Era uma pessoa extremamente habilitada ao uso de armas de fogo. Não havia a possibilidade de querer queimar algum arquivo.” Com 43 anos de idade, o ex-capitão do Bope era detentor de segredos, relações e negócios poderosos. Ele chefiava, de acordo com o Ministério Público, um grupo de matadores de aluguel do Rio conhecido como Escritório do Crime. Além disso, mantinha uma relação de proximidade com a primeira-família da República e seu entorno. Em maio de 2003, Adriano e o sargento Fabrício Queiroz, à época no 18º Batalhão da Polícia Militar, mataram um técnico de refrigeração na Cidade de Deus durante uma ronda, registrando a ação como auto de resistência. Ou seja: a dupla de PMs alegou que só efetuou os disparos porque foi atingida antes, exatamente como faz agora a polícia da Bahia. Cinco meses depois desse episódio, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro apresentou uma moção de louvor na Assembleia Legislativa do Rio para elogiar Adriano por seu “brilhantismo”.
Em 2005, quando Adriano estava preso, acusado de outro homicídio, Flávio lhe concedeu a Medalha Tiradentes, a maior honraria do Legislativo do Rio. Naquele mesmo ano, Jair Bolsonaro, então um deputado do baixo clero, também ocupou a tribuna da Câmara para prestar solidariedade ao ex-capitão, que seria inocentado e libertado da cadeia em 2006. Com o passar do tempo, os laços se estreitaram. Como deputado estadual, Flávio Bolsonaro contratou a mãe e a ex-mulher de Adriano para trabalhar em seu gabinete. Parte dos salários das duas irrigou o esquema de rachadinha operado por Queiroz, o antigo parceiro de ronda. Em razão dessas conexões, tão logo a morte de Adriano foi noticiada, ganhou as ruas e as redes sociais a versão de que poderia ter ocorrido uma queima de arquivo encomendada pelo clã Bolsonaro. Por essa tese, os governadores da Bahia, Rui Costa (PT), e do Rio, Wilson Witzel (PSC), opositores a Bolsonaro e pré-candidatos a enfrentá-lo na sucessão presidencial de 2022, teriam agido, mesmo que involuntariamente, para ajudar o atual mandatário, o que não faz muito sentido.
Os Bolsonaro, como se sabe, também gostam de hipóteses controversas. Em resposta, seus aliados passaram a alegar que Witzel teria dado prioridade à ação policial contra Adriano da Nóbrega por temer que ele revelasse detalhes das relações de líderes das milícias com o poder público do Rio. Em uma solenidade, o governador declarou que a operação “obteve o resultado que se esperava”. “Chegou ao local do crime para prender, mas infelizmente o bandido que ali estava não quis se entregar, trocou tiros com a polícia e infelizmente faleceu. A Polícia do Rio de Janeiro mostrou que está em outro patamar”, afirmou Witzel. Na quarta-feira de manhã, um funcionário do governo do Rio disse a VEJA que o corpo do ex-capitão seria cremado ainda naquele dia, o que foi impedido pela Justiça. No Twitter, Flávio Bolsonaro reagiu a essa possibilidade: “Acaba de chegar a meu conhecimento que há pessoas acelerando a cremação de Adriano da Nóbrega para sumir com as evidências de que ele foi brutalmente assassinado na Bahia. Rogo às autoridades competentes que impeçam isso e elucidem o que de fato houve”.
Até agora, pouco se sabe sobre o desenrolar da Operação BR 101, como foi batizada essa ação policial. De acordo com a versão oficial, ao encontrar Adriano da Nóbrega, policiais tentaram uma rendição pacífica. O ex-capitão não aceitou, sacou uma pistola e se refugiou na sede do sítio onde estava escondido. Três policiais, então, invadiram a casa. Um deles se postou à frente dos demais com um escudo à prova de balas. Recebidos com disparos, os agentes teriam reagido com tiros de fuzil e espingarda. “Eles gritaram abra a porta, meteram o pé na porta e saíram uns quatro ou cinco tiros”, disse um vizinho do sítio. Pedindo anonimato, ele contou ainda que outro morador da região, que passava em frente ao lugar, ouviu Adriano pedir socorro aos gritos. Na quarta-feira, VEJA visitou a sede da propriedade, que ainda tinha uma grande mancha de sangue no chão da sala. Não há nenhum sinal de tiro na parede que fica atrás da poça de sangue. São cinco as marcas de bala no lugar, todas na direção de dentro para fora da casa. Uma delas vazou a janela. As outras atingiram o rodapé da porta e a parede, próximo ao chão, um erro que um atirador de elite, como Adriano, dificilmente cometeria.
O cerco ao ex-capitão durou mais de um ano. Policiais dizem que o monitoramento de sua esposa foi determinante para a descoberta de seu paradeiro. Júlia, cujas movimentações eram acompanhadas pela equipe de inteligência da polícia do Rio, foi passar uns dias com Adriano numa casa que ele alugou num condomínio de luxo na Costa do Sauípe. Foi lá que ocorreu a primeira tentativa de prender o ex-capitão. Adriano conseguiu fugir correndo por uma área de mangue e atravessando a nado um rio. Em uma cidade vizinha, alugou quatro carros num intervalo de três horas, até chegar à sede de uma fazenda em Esplanada. A propriedade pertence a Leandro Abreu Guimarães, que disse aos policiais conhecer o ex-capitão de eventos de vaquejada. As autoridades suspeitam, no entanto, que Guimarães lavava o dinheiro sujo obtido pelo miliciano. Quando estava na fazenda, Adriano recebeu uma ligação da esposa, assustada depois de ser parada por uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. Ele, então, fugiu para o sítio onde foi finalmente alcançado pelos policiais.
A morte do miliciano, no entanto, não pode ser o capítulo final desta história. Por suas relações e trajetória, ele conhecia e participou de intrincadas ligações do mundo do crime com a política. Tratar o caso como o de um bandido morto em confronto com a polícia é reduzir a importância do que de fato aconteceu. Cabe às autoridades competentes esclarecer devidamente as circunstâncias de sua morte e também, a partir das mensagens de celulares e dos depoimentos de familiares, descobrir as informações que o ex-capitão do Bope possuía. Seu desaparecimento definitivo provavelmente causou alívio em figuras importantes da polícia e talvez até de esferas governamentais. E, pelas circunstâncias e pelo grande interesse em torno de sua figura, há fortes indícios de que houve uma “queima de arquivo”. Mais do que nunca, e para que nenhuma dúvida paire sobre os nomes envolvidos, torna-se necessária uma investigação aprofundada com um claro objetivo: saber que revelações afinal estavam com o falecido Adriano da Nóbrega.
Com reportagem de Jana Sampaio
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674