Um dos principais pensadores brasileiros do século XX, Darcy Ribeiro (1922-1997) teve várias encarnações em vida. Sociólogo de formação, também foi antropólogo, educador, etnólogo, indigenista, gestor público, político e romancista. Como escritor, vestiu o fardão da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira 11 de 1993 até sua morte. Mas a pele que melhor lhe deu contorno foi a de intérprete do Brasil, país que conhecia profundamente na teoria e na prática, desde o início da carreira, na segunda metade dos anos 1940, quando começou a trabalhar no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), embrião da Fundação Nacional do Índio (Funai). Deixou um legado importante e precioso, que se tornou objeto de várias homenagens no ano do centenário de seu nascimento.
Uma das mais abrangentes é a exposição Utopia Brasileira — Darcy Ribeiro 100 Anos, em cartaz no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, até 25 de junho de 2023. Com curadoria da socióloga Isa Grinspum Ferraz e instalações do cineasta Eryk Rocha, reúne fotografias, objetos, documentos, vídeos, plumárias indígenas, obras literárias e cartas inéditas do acervo do intelectual. São itens que representam o pensamento vivo do célebre mineiro de Montes Claros, cujo projeto de país passava pela associação entre educação e cultura, valorização e proteção dos povos originários, defesa da miscigenação e da democracia racial, o combate aguerrido ao racismo e a obrigatória mitigação da miséria.
No início dos anos 1960, depois de fundar a Universidade de Brasília (UnB), Darcy Ribeiro foi ministro de João Goulart, primeiro na pasta da Educação e, depois, na da Casa Civil. Após o golpe civil-militar de 1964, ele teve seus direitos cassados pelo Ato Institucional número 1 (AI-1) e se exilou no Uruguai. Retornou ao Brasil entre 1968 e 1969, período no qual foi enquadrado pela Lei de Segurança Nacional após a edição do AI-5, e acabou retornando ao exílio. No Chile e no Peru, trabalhou diretamente com os presidentes à época — o chileno Salvador Allende e o peruano Juan Velasco Alvarado — em projetos educacionais. Entre suas realizações nesse intervalo também figuram estudos para universidades no México e na Costa Rica.
Depois da anistia, voltou ao Brasil em 1979, para constatar que o caminho de reconstrução seria longo. Nos anos 1980, ele disse que o Brasil havia perdido o “nervo ético”, porque normalizara a fome e a miséria. O fato de haver famílias inteiras morando nas ruas o consumia. Achava, com razão, que a educação é o instrumento mais eficiente para formar as pessoas e prepará-las para uma sociedade mais justa. Sua frustração, já naquele tempo, era constatar que o ensino estava “uma lástima” no país. De lá para cá, vale ressaltar, não houve avanços nesse campo, só retrocessos — em todos os níveis. “As questões pelas quais o Darcy batalhou continuam as mesmas”, diz Isa Grinspum, que foi assistente do antropólogo e teve nele um mentor. “Por isso, ainda são de uma atualidade muito grande.”
Na redemocratização, Darcy Ribeiro mergulhou na política. No primeiro mandato de Leonel Brizola, foi vice-governador do Rio de Janeiro, quando criou os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) e inaugurou o Sambódromo. No segundo, abandonou o Senado, em 1991, para assumir a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais, quando fundou a Universidade Estadual do Norte Fluminense (1993). Depois, faria a relatoria do Projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) e idealizaria a Universidade Aberta do Brasil e a Escola Normal Superior (1996).
Embora dissesse, antes de morrer, que havia fracassado em seus projetos, Darcy Ribeiro deixou como herança um pensamento fundamental, que merece ser debatido hoje: a ideia de que o Brasil precisa se reinventar sem seguir modelos, porque a visão europeia e americana não combinam com o que somos. Nesse aspecto, poucos brasileiros — Darcy Ribeiro muitas vezes foi duramente criticado — contribuíram tanto para desvendar a verdadeira alma nacional.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816