Muitas pessoas passam uma vida inteira sem achar o amor verdadeiro. Tive a dádiva de ter ao meu lado a minha cara-metade, uma relação tão profunda que é difícil pôr em palavras. Desde o início, foi arrebatador. Eu e o André (Piva) nos conhecemos numa festa e, depois do primeiro encontro, não nos desgrudamos. Em duas semanas, estávamos morando na mesma casa. Nunca passamos dez dias separados em 25 anos. Éramos muito jovens e crescemos um com o outro. Ele me dando força como estilista, quando decidi me descolar do ateliê da minha mãe (Glorinha Pires Rebelo), e eu o incentivando como arquiteto. Embora ainda não fosse comum entre pessoas do mesmo sexo, saíamos de mãos dadas ou abraçados na rua e nos beijávamos em público já naquele início, em meados dos anos 90. A intenção não era chamar atenção, vivíamos o relacionamento naturalmente. Fomos o primeiro casal gay no Rio de Janeiro a constar no livro da Sociedade Brasileira como tal e a ser oficialmente padrinho em um casamento. De um dia para o outro, André se foi sem aviso prévio, aos 52 anos, enterrando todos os sonhos que a gente cultivava. Sua morte, mesmo passado quase um ano, ainda me causa uma dor asfixiante, daquelas que deixam a gente com dificuldade para respirar. Não consigo passar um dia sem chorar.
A partida do André foi repentina. Ele começou a sentir dores nas costas no fim de julho do ano passado. Os exames detectaram um problema em duas vértebras, mas isso não justificava o quadro. Na semana seguinte, recebeu o diagnóstico de leucemia. André morreu em 24 horas, no dia 5 de agosto. Passei um mês sem coragem de pisar na casa que construímos e onde morávamos. Fiquei no apartamento da minha irmã, onde só tinha forças de ir da cama para o sofá. Em um período de menos de um ano, ainda perdi minha mãe. Senti muito, mas ela estava sofrendo e tenho consciência de que foi um alívio. Morreu em março de uma doença crônica na bexiga. Ela foi, sem dúvida, a pessoa que mais compreendeu e apoiou o nosso amor.
No momento em que tantas famílias lidam com a morte, milhares em decorrência da Covid-19, expor o luto é fundamental. Aprendi com essa experiência que não se pergunta a um enlutado se está tudo bem. Claro que não está. Melhor oferecer o ombro, escutá-lo e lhe dar tempo. Compreendi que, mesmo com aquela sensação da vida em suspenso, é vital buscar estímulos diários, algo que o obrigue a levantar, tomar banho e trocar de roupa, ainda que a dor permaneça. A terapia do luto, que vem me ajudando, frisa a necessidade de ter propósitos. Voltar à coordenadoria da Diversidade Sexual no município do Rio me dá forças. A brutalidade do que vivi fez com que eu desenvolvesse uma sensibilidade diferente. Estamos criando um programa de acolhimento do luto, com apoio psicológico. Fora da gestão pública, farei uma campanha para doação de medula.
Até a morte do André, eu não tinha a dimensão de quanto tínhamos inspirado casais homossexuais. Recebo mensagens emocionantes de todo o Brasil. Quando tornamos pública a nossa história, o relacionamento entre dois homens era muito associado à promiscuidade. O André nunca se conformou em sermos chamados de “companheiros”, sempre fomos um casal. Fizemos uma festa de casamento em 2011, meses depois de a união civil entre pessoas do mesmo sexo ser reconhecida no país. Nosso caso acabou ganhando repercussão. A Justiça carioca criou resistência e só dois anos mais tarde vencemos a batalha, formalizando esse direito no papel. Volta e meia me pergunto o porquê de o André ter ido e eu ficado. Por quê? No meio desse momento tão doloroso, continuo a lutar para que outros, como nós, possam viver o amor pleno.
Carlos Tufvesson em depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747