Em agosto de 2010, a minha mãe começou a se sentir mal. Iniciamos uma peregrinação a hospitais e acabamos indo a um médico muito frio. Ele disse que minha mãe tinha câncer e que era provável que ela morreria na cirurgia. Isso tirou a nossa fé e esperança. Nesse meio-tempo, a minha irmã falou sobre um lugar em Goiás onde se operavam milagres. Minha mãe quis experimentar, impulsionada pela vontade de viver. Desesperadas, fomos a Abadiânia.
Estávamos fragilizadas e a vulnerabilidade é um componente importante em Abadiânia. Eu apresentava um quadro de choro e desequilíbrio emocional. Pessoas vieram falar conosco, mas o que parecia ser o início de um tratamento era, na verdade, uma coleta de informações de vítimas em potencial, aquelas que possuíam um perfil que agradaria a João. Logo perceberam que eu era a mais vulnerável e por isso seria o alvo ideal.
Na hora do atendimento de minha mãe, fui separada da família. Não questionei, pois não queria criar conflitos com aquelas pessoas que, afinal, estavam sendo atenciosas. Depois, fui levada para uma sala, onde me deram um copo de água que, lembro muito bem, deixa as pessoas entorpecidas. Fui instruída a esperar para conversar com João. Quando ele apareceu, demorei para perceber que a situação era anormal. Foi aí que fui violada.
Quando voltamos para São Paulo, a minha mãe foi fazer a cirurgia. Uma hora e meia depois do começo do procedimento, o médico nos ligou para dizer que, inacreditavelmente, o tumor era benigno. Ela não tinha câncer. Aquilo veio como uma enorme surpresa. Todos acabamos atribuindo o milagre à viagem a Abadiânia. Queríamos acreditar naquilo e minha mãe desejou voltar para lá e agradecer.
Algumas amigas que acompanharam a nossa história foram junto. Uma delas foi escolhida por João. Ele disse que ela precisava de uma limpeza em suas energias. No atendimento, ela também sofreu abusos. Foi então que a minha ficha caiu. Só aí percebi o que tinha acontecido comigo. Veio uma revolta, uma indignação profunda. Pensei: “Como é que eu, uma pessoa esperta, caí nesse golpe tão clichê?”. Fui tomada por uma dor gigante.
Relutei para contar aos meus pais o que tinha acontecido, porque sabia que eles se sentiriam culpados — e eles se sentiram mesmo. Tive medo, culpa, vergonha. É esse o nível de crueldade desse homem. Ele não violenta apenas a vítima, mas a sua família inteira. Toquei a minha vida e me preparei para quando o escândalo explodisse. Quando as histórias horríveis vieram à tona, fiz questão de dar o meu depoimento, falei com o Ministério Público e com as promotoras, que ficaram espantadas com a quantidade de informações que eu possuía. Falei para elas não se enganarem com a escala dos crimes desse homem. Não é um crime contra a mulher, mas contra a humanidade.
Algum tempo depois, entrei em contato com um produtor que queria fazer um documentário sobre João. Pensei que seria uma forma de amplificar a minha mensagem e a de outras sobreviventes. Meu objetivo era fazer com que o projeto fosse um alerta para meninas e mulheres. Foi a partir daí que nasceu o documentário Cura e Crime, da Netflix. Eu queria mostrar que a violência muitas vezes se disfarça de algo inocente para atingir as suas metas.
Recentemente, João recebeu a oportunidade de cumprir a pena em prisão domiciliar. Fiquei revoltada. É angustiante pensar nele em sua mansão. Quando a Justiça é omissa a ponto de deixar em casa um criminoso condenado a 64 anos de prisão, isso afeta toda a sociedade. Foi uma decisão injusta que mostra como somos atrasados. Esse monstro não pode ficar impune.
Andrea Mannelli em depoimento dado a Sabrina Brito
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759