Depois de encarar uma viagem de avião a Varsóvia, deslocar-se de lá para a fronteira da Ucrânia e percorrer de trem 700 quilômetros até Kiev — idêntico trajeto trilhado, sob segurança máxima, pelo americano Joe Biden e pelo francês Emmanuel Macron, entre outros —, o diplomata Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, foi conduzido, na quarta-feira 10, direto da estação para um encontro com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em lugar não revelado. Na bagagem, levava um plano de ação sabidamente incômodo para o anfitrião: decretação de cessar-fogo, seguida de abertura de negociações, de efeito imediato, com as tropas de Vladimir Putin ainda ocupando um naco do território ucraniano. A efetividade da proposta, que vem sendo repetida há meses pelo presidente Lula, é duvidosa, mas a reunião em Kiev deixa claros dois pontos vitais da política externa brasileira: o Brasil quer conquistar o protagonismo perdido no cenário internacional e Amorim é o idealizador deste e de outros movimentos definidores no Itamaraty, e com pleno aval do presidente.
O encontro não resultou em avanços concretos nem se esperava que o fizesse. “Eu enfatizei que o único plano capaz de deter a agressão russa na Ucrânia é a Fórmula Ucraniana para a Paz”, postou nas redes o presidente Zelensky. “O diálogo foi positivo, de criação de confiança, visando explicar nossos objetivos para a paz”, declarou Amorim. Ou seja: continua tudo como está.
No papel de comandante de fato dos assuntos externos, Amorim busca implementar o que chama de “diplomacia ativa e altiva”, conceito que desenvolveu como ministro das Relações Exteriores nos dois mandatos anteriores de Lula. No caso da guerra na Ucrânia, essa política se traduz em uma posição ambígua: o Brasil condena a invasão promovida pela Rússia, uma agressão deliberada e injustificada, mas insiste em que, como diz Lula, “alguém precisa pensar na paz”. De preferência, ele, Lula. “É complicado dizer onde termina a esperteza e começa a ingenuidade”, alfineta um diplomata com posição de destaque no Itamaraty. Insere-se no clima geral de desconfiança dos reais interesses brasileiros o fato de o governo querer incluir os cinco integrantes dos Brics em um seleto grupo de nações encarregadas de “facilitar” um cessar-fogo, sem levar em conta que três deles — África do Sul, Índia e China — estão entre os 35 países que se abstiveram na votação da resolução da ONU que condenou a guerra (o quarto é a própria Rússia). Em vez de inspirar neutralidade, a iniciativa causa má impressão nos Estados Unidos e União Europeia, aliados relevantes do Brasil.
Na cruzada por protagonismo e liderança no cenário internacional, a política externa brasileira tocada por Amorim ostenta mais pisadas na bola do que gols. No começo do governo, navios militares do Irã, país boicotado por quase todo mundo, tiveram autorização para ancorar no Porto do Rio de Janeiro. O assessor especial de Lula esteve em Moscou há um mês para reuniões com altos funcionários e Putin em pessoa abriu espaço na agenda para recebê-lo. Lula, por sua vez, recepcionou o ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, no Palácio do Planalto. Em outra ocasião, responsabilizou os países ocidentais que ajudam a Ucrânia militarmente pela continuidade da guerra — uma declaração desastrada, reflexo de conversas ao pé do ouvido com Amorim, que foi considerada “um deslize fora de tom” pelo próprio Itamaraty e rendeu protestos nas escalas seguintes, Portugal e Espanha (Lula, como se sabe, não tira o pé da estrada desde que assumiu a Presidência). Aproveitando a recente estadia em Londres, para a coração de Charles III, o presidente gastou saliva justificando as posições brasileiras junto ao primeiro-ministro Rishi Sunak. Sem sucesso. O premiê britânico não tocou no assunto publicamente.
A visão de que o Brasil não deve “falar fino” com as potências mundiais, partilhada por Lula e Amorim, tem reflexo nas questões regionais. O presidente enviou seu ex-chanceler para reabrir a embaixada brasileira na Venezuela, fechada por Jair Bolsonaro, e Amorim aproveitou para estreitar as relações com Nicolás Maduro, em um encontro revelado pelo ditador em uma postagem nas redes sociais comemorando os “acordos de união e solidariedade” entre os dois países. “A busca por marcar diferenças com o governo anterior tem gerado controvérsias desnecessárias. O Brasil consegue se colocar como ator neutro trabalhando nos bastidores, sem precisar aparecer de maneira excessiva”, critica Leandro Lima, analista da consultoria Control Risks.
Lula e Amorim tiveram dois encontros casuais antes de serem devidamente apresentados, no início do primeiro mandato, em 2003, pelo então assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia. Três outros diplomatas foram sondados para assumir o Itamaraty, mas o presidente se decidiu por Amorim por motivos vários, inclusive alguns prosaicos: os dois compartilhavam a inconveniência de caspas no couro cabeludo. E rindo se aproximaram ainda mais. Na ocasião, Amorim era filiado ao PMDB e ex-chanceler do presidente Itamar Franco, mas, 139 viagens depois, tornaram-se amigos próximos. Uma delas foi a missão no Irã, em 2010, quando o Brasil anunciou haver convencido Teerã a produzir energia nuclear só para fins pacíficos. Pelo feito, Lula chegou a acreditar que ganharia o Nobel da Paz (o que, aliás, teria virado uma obsessão incansável), mas o tal pacto foi desfeito em menos de 24 horas pelos Estados Unidos. A amizade se consolidou de vez quando Amorim, que quase não bebe, se rendeu a uma dose de uísque e, língua destravada, queixou-se de não poder chamar o presidente de Lula, simples assim. Ele prontamente concedeu a intimidade, que só é usada, a bem da verdade, quando estão a sós.
Neste governo, Amorim indicou dois de seus ex-chefes de gabinete para posições centrais do Itamaraty: Mauro Vieira assumiu a pasta e Maria Laura da Rocha é secretária executiva. Indicações internas para embaixadas também passam por sua mesa, onde nomes já aprovados pelo chanceler têm sido riscados. Apesar da concentração de poder em mãos alheias, Vieira garante não sentir desconforto. “Eu e o Celso costumamos rir sempre que tentam criar intrigas entre nós. São especulações recicladas, que aparecem de tempos em tempos, ao longo de quarenta anos de amizade”, diz Vieira. Quando perguntado como quer ser tratado, Amorim recorre, em tom de brincadeira, a uma resposta irônica do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger: “Excelência serve”. Quem o conhece sabe que a piada tem lá seu fundo de verdade.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841