Na manhã do dia 17 de março de 2014, um grupo de procuradores e agentes da Polícia Federal chegou ao Posto da Torre, em Brasília, a cerca de 3 quilômetros do Congresso Nacional, para uma ação de busca e apreensão em apuração sobre lavagem de dinheiro envolvendo o deputado paranaense José Janene e quatro doleiros, um deles o dono do local. A investigação, rotineira, mirou no que viu e acertou no que não viu: acabou batendo às portas da Petrobras e de lá puxou um fio de onde saíram 130 denúncias contra 533 acusados, 278 condenações e 295 prisões, incluindo um ex-presidente da República, ex-ministros, ex-governadores e um ex-presidente da Câmara, além de políticos de partidos variados, executivos, lobistas e empresários, no que certamente pode ser apontada como a maior ofensiva contra a corrupção da história do país.
Coube à delegada Erika Marena, da PF, se inspirar no estabelecimento, que tinha também uma lavandeira e uma casa de câmbio, para dar o nome à operação que ali nascia: Lava Jato. Quase sete anos depois, a marca chega ao fim, com a desativação da força-tarefa de Curitiba, a que mais barulho provocou — para o bem e para o mal — no período em que o lavajatismo assombrou a política do país. O atestado de óbito foi emitido em uma nota do Ministério Público Federal do Paraná, na qual o atual coordenador do grupo, o procurador Alessandro José de Oliveira, afirma que “o legado da força-tarefa da Lava-Jato é inegável e louvável”, mas acrescenta que “ainda há muito trabalho” a fazer.
A “morte” da Lava-Jato significa o fim de um formato, mas não o abandono da luta contra a corrupção, como sinaliza o procurador-geral da República, Augusto Aras, que já no ano passado deu início ao redesenho da atuação da instituição: no lugar das forças-tarefas — provisórias e montadas com procuradores de comarcas diferentes —, o papel passará a ser desempenhado por núcleos regionalizados e fixos, denominados Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos), modelo que já havia sido delineado em uma resolução do Conselho Nacional do MPF de 2013. Em Curitiba, quatro membros da força-tarefa irão para o novo órgão — Laura Tessler, Luciana Bogo, Roberson Pozzobon e o próprio Alessandro Oliveira, todos com mandatos até agosto de 2022. Outros dez atuarão até 1º de outubro, mas sem estarem baseados em Curitiba e sem dedicação exclusiva. A extinção segue o roteiro das forças-tarefas de São Paulo, que acabou em setembro de 2020, e do Rio de Janeiro, que termina em setembro deste ano. Na visão de Aras, o formato é precário, desembolsa muitos recursos financeiros e é pouco institucional. “Não há problema que as investigações sejam conduzidas com outras denominações ou equipes, é um aspecto positivo, até pelo desgaste causado pelo gigantismo da operação”, pontua Michael Mohallem, professor da FGV e coordenador do projeto Lava-Jato: Lições para o Combate à Corrupção.
A Lava-Jato sempre teve grande apoio popular. A primeira bola dividida se deu na eleição de 2018, quando o então juiz Sergio Moro divulgou trechos da delação do ex-ministro Antonio Palocci com acusações ao PT às vésperas do primeiro turno, o que levantou suspeitas de parcialidade para prejudicar o candidato petista, Fernando Haddad — críticas que aumentaram quando o magistrado abandonou a toga para ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Mas o ponto de inflexão foi mesmo em junho de 2019, com o vazamento de mensagens obtidas por hackers que revelaram diálogos comprometedores entre procuradores de Curitiba, seu coordenador, Deltan Dallagnol, e Moro. E desceu um novo degrau em abril de 2020, quando Moro deixou o governo atacando o presidente, o que levou à perda do apoio de parte importante da direita representada no bolsonarismo.
Politicamente, o crepúsculo da força-tarefa de Curitiba se dá em um momento delicado. Moro tem visto Lula, o seu principal condenado, ganhar pontos para a sua tese de suspeição no caso envolvendo o tríplex do Guarujá — o petista conseguiu junto ao ministro Ricardo Lewandowski o acesso à integra das mensagens vazadas. A divulgação de novos trechos ocorre às vésperas de o ministro Gilmar Mendes liberar a ação para julgamento. Ainda no campo político, os lavajatistas viram o Centrão conquistar o comando da Câmara, liderado por Arthur Lira, do PP, ironicamente o partido com o maior número de investigados na operação, entre eles o próprio Lira, réu em ação que apura uma suposta “quadrilha” dentro da legenda.
Exaltada e criticada, a Lava-Jato não provocou só polêmicas, mas trouxe resultados concretos. Quebrou a máxima de que criminosos de colarinho branco não vão para a cadeia, ao colocar gente do quilate de Lula atrás das grades. Também expôs a relação promíscua entre grandes empresas e partidos políticos. De quebra, recuperou 4,3 bilhões de reais por meio de 209 acordos de colaboração e dezessete de leniência. Mas, assim como os acertos, os erros servirão para dar um novo norte ao enfrentamento à corrupção. O grupo de Curitiba, que um dia encontrou o fio do maior escândalo da história do país em um posto de combustíveis, pode estar saindo da ribalta. Mas o combate aos corruptos não deverá sair de cena jamais.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724