Nas últimas décadas o Brasil passou por muitas e boas. Superado o populismo getulista, vieram os militares, que, em mais de vinte anos de poder absoluto, muito pouco contestado (os poucos contestadores foram severamente punidos), se declararam dispostos a mudar o país desde sua base. O Brasil mudou alguma coisa, nem sempre para melhor, a um custo alto para a cultura e a liberdade de expressão. Sucederam-se governos populistas, conservadores, presidentes de todo tipo, mas o país permaneceu quase igual, enquanto muitas outras nações, antes pobres (a Coreia é um bom exemplo), desenvolviam-se, modernizavam-se, enriqueciam.
Os “explicadores” do Brasil vêm tentando, sem muito sucesso, encontrar as razões que impedem nosso país de deslanchar e o mantêm pobre e desigual, distante do ideal que traçamos para ele no futuro. Esse futuro não chegou e permanece cada vez mais distante, uma permanente promessa, um eterno devir. E nós ficamos sem entender como é que um povo que se considera tão esperto e cordial, vivendo em uma terra tão generosa, não chegou ainda ao tão ansiado Primeiro Mundo.
Há situações que nos transportam, individualmente, a esse sonhado patamar: quando viajamos para Miami ou Nova York, mesmo que seja apenas para comprar produtos chineses em outlet, usar máscara do Mickey ou assistir a um musical da Broadway… O mundo vive de aparências, e exibir nossa suposta cidadania universal é muito importante. Queremos mostrar que estamos descolados desse Brasil atrasado e pobre, embora ele insista em nos perseguir.
Por meio de uma ginástica mental, tentamos situar nossa pessoa física no Primeiro Mundo, em campo oposto à entidade nacional, que continua afundando no Terceiro. Por mais que isso fira a lógica, fazemos parte de uma nação sem a ela pertencer. Para nós, tanto o povo de nosso país quanto os governantes, que nós mesmos elegemos, são “eles”, nunca “nós”. Afinal, nós nos vemos (ou queremos nos ver) como cidadãos do mundo, pairamos acima do mal e só compartilhamos, quando nos convém, algumas coisas que nos parecem ser boas (Carnaval, futebol, cordialidade, jeitinho) de nossa identidade brasileira.
“O fato de o Estado ter precedido a nação no Brasil é o motivo para o divórcio entre governo e sociedade”
Isso nos exime de responsabilidade com relação aos desmandos dos governantes, à desigualdade social, à má qualidade da educação pública, à baixa produtividade de nossas universidades. De resto, não é de nossa alçada resolver os problemas estruturais do país. Na verdade, não nos empenhamos seriamente em resolvê-los, pois não utilizamos educação, saúde ou transporte públicos. Essa é uma questão a ser resolvida entre políticos e povo, não temos nada com isso…
Reclamamos contra as ruas inundadas durante as chuvas, mas cimentamos todo o terreno em que levantamos nossa casa (se possível com uma área construída equivalente ao dobro da aprovada na prefeitura). Declaramo-nos chocados com a violência no trânsito, mas achamos normal beber antes de dirigir e transformar as ruas (incluindo as faixas de pedestres) em espaço de competição, onde nos sentimos como El Cid derrotando os mouros.
Somos esquizofrênicos sociais, divididos entre nossa autoimagem generosa e primeiro-mundista e nossa prática egoísta e autoritária. Enquanto nosso espelho nos mostra bons e cordiais, nosso comportamento nos revela preconceituosos e agressivos.
A verdade é que não assumimos as responsabilidades que cabem a quem pertence a uma sociedade complexa, baseada em contratos sociais que só funcionam se são cumpridos por todos.
O fato de o Estado ter precedido a nação no Brasil talvez seja o motivo principal de haver um divórcio tão profundo entre governo e sociedade. Outros países, entretanto, começaram de maneira mais difícil ainda e conseguiram formar um amálgama mais homogêneo que o nosso, em bem menos tempo.
Às vezes explicações muito complexas não nos ajudam a encontrar a solução de um problema. Mas a história nos fornece algumas pistas tão evidentes… Fomos o último país ocidental a eliminar a instituição da escravidão. Muita tinta foi gasta para entender o motivo de isso ter ocorrido (interesses do latifúndio, pressão dos comerciantes de escravos etc.), e agora há certo consenso entre os historiadores: a escravidão não acabou antes porque parcela significativa da população brasileira — e aqui não estou falando apenas dos grandes proprietários rurais — não queria. E ela não queria que isso acontecesse porque a escravidão era confortável, as pessoas estavam acostumadas com o seu escravo de ganho, o auxiliar doméstico, a escrava sexual.
E não seria justamente o que está acontecendo agora? Não é confortável para muita gente continuar a viver num país de Terceiro Mundo, desde que seja no topo da escala social? Nos países desenvolvidos não se encontra, a preço tão baixo, mão de obra para realizar os serviços que não queremos…
Assim, talvez estejamos mais próximos de nos tornarmos uma Arábia Saudita do que uma Suécia. Afinal, riqueza sem vontade política não muda a história. Não há países que estão quase afogados em petróleo e continuam ostentando gritantes diferenças sociais? Ásia, África e mesmo América do Sul têm ótimos exemplos.
Queremos, de fato, educação, saúde, justiça e segurança para todos? Afinal, apesar de alguns transtornos, nós nos defendemos com escolas particulares, com planos de saúde privados, com bons advogados e com grades, muros, segurança privada e carros blindados. A violência e a falta de justiça, de saúde e de educação formal atingem, com mais contundência, os mais pobres, não adianta tergiversar.
Se quiséssemos encontrar soluções já o teríamos feito. A pergunta que incomoda é: nós queremos, de fato, mudar? Sonhar grande é insuficiente, embora possa aplacar algumas consciências. Mudar implica dar materialidade a esse sonho, pedra a pedra. Mais difícil do que fazer com que o país se torne rico e poderoso será construir uma nação de cidadãos, com direitos iguais, sem o populismo que tem servido para escamotear as desigualdades, por meio de esmolas concedidas pelo poder. Cabe a nós decidir.
* Jaime Pinsky é historiador e editor, professor livre-docente da USP e professor titular da Unicamp, autor ou coautor de trinta livros
Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669