O ex-governador Sérgio Cabral, que comandou o Rio de Janeiro de 2007 a 2014, entrou para a história como o político que acumula a maior pena no Judiciário brasileiro. Suas treze condenações somam 280 anos de reclusão. Encarcerado desde novembro de 2016, ele começou a tentar um acordo de delação premiada no fim de 2018, quando suas sentenças atingiam 133 anos de prisão. A opção tardia pela colaboração foi ignorada desde o início pelo Ministério Público Federal, mas acabou sendo aceita pela Polícia Federal, que firmou o acordo, homologado no início deste mês pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal. Fim da novela? Não. O procurador-geral da República, Augusto Aras, foi ao STF para contestar a decisão, com o argumento de que esse político tem poucas informações a contribuir para as investigações em andamento. Em nota, a PGR disse ainda que há “fundadas suspeitas” de que Cabral continua ocultando valores ilícitos. Fachin deve levar a questão ao plenário do STF em data ainda a ser definida.
O caso reavivou as polêmicas em torno das delações, instrumento relativamente novo, instituído por aqui apenas em 2013. Pela lei brasileira, tanto os Ministérios Públicos quanto as polícias podem fazer acordos. O problema é que, no Brasil, esses órgãos não trabalham em conjunto — muitas vezes, atuam como concorrentes. Desde o início, o MPF sempre quis exclusividade nas decisões. A PF teve de aguardar até junho de 2018 para que o Supremo confirmasse que a instituição poderia fechar esse tipo de colaboração. A queda de braço entre os dois órgãos costuma estar no cerne das delações enroladas, como a do ex-publicitário Marcos Valério e a do ex-ministro Antonio Palocci, ambas fechadas com a polícia após a negativa dos procuradores. Segundo advogados que acompanham o processo de Palocci, a colaboração já deveria ser desconsiderada pelo simples fato de algumas revelações serem atribuídas a terceiros — ou seja, ele não presenciou a cena. Há ainda graves problemas de inconsistência no relato do ex-ministro. Palocci se contradisse claramente em pelo menos um ponto de sua delação. No acordo, ele afirmou à Polícia Federal que recebera 1,5 milhão de reais do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para influenciar o PT, que estava no poder na época, a atuar pela suspensão da Operação Castelo de Areia, que acabou sendo arquivada em 2011. Como prova do pagamento, Palocci apresentou a cópia de um contrato de sua empresa Projeto firmado com o escritório de Thomaz Bastos em dezembro de 2009. Na delação, ele disse que o contrato só servira para justificar a propina. O problema é que já havia utilizado esse mesmo documento para justificar o recebimento de serviços de consultoria pela Projeto, em 2011, em outro processo. Na ocasião, ele explicou que fora contratado por Thomaz Bastos para atuar a favor da fusão do Pão de Açúcar com as Casas Bahia.
No imbróglio mais recente, sobre a tentativa de acordo do ex-governador Cabral, a movimentação de Aras não é isolada. Procuradores e ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do STF se articulam para que investigações que envolvam as revelações feitas nessa delação não sejam levadas adiante enquanto o Supremo não puser um freio de arrumação nas regras sobre as colaborações fechadas por policiais. Mesmo quem abriu as portas no passado para essa possibilidade mostra hoje arrependimento. “As delações fechadas por policiais são um caso clássico do remédio que vira veneno”, afirmou a VEJA um ministro do STF que, em 2018, foi a favor da autorização. Em uma confraternização há pouco mais de uma semana, dois ministros do Supremo falaram abertamente sobre a necessidade de impor uma trava aos acordos fechados pela Polícia Federal. Interlocutores do STF acreditam que pelo menos quatro magistrados estariam 100% alinhados para pôr um freio de contenção nas delações celebradas com delegados de polícia.
A avaliação é que delações a qualquer custo têm sido fechadas sem o devido embasamento. Isso explica por que a PGR celebrou 183 acordos e apresentou apenas 45 denúncias. Os delatores usufruíram benefícios como redução de pena, prisão domiciliar e isenção de multas. Mas o resultado prático, muitas vezes, foi pífio. As denúncias, algumas sem nenhuma prova, são usadas também para assassinar reputações e até influir no processo eleitoral. Na eleição para governador do Rio, acusações contra o então candidato Eduardo Paes (DEM) foram utilizadas durante a campanha para mostrá-lo como não qualificado para o cargo. Até hoje nada foi comprovado. Embora não haja perspectiva ainda de solução na direção de um equilíbrio, é provável que a discussão leve a aprimoramentos desse instrumento.
Um dos exemplos que servirão de aprendizado envolve a delação dos empresários Joesley e Wesley Batista, donos da JBS. O acordo está na corda bamba desde que o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu sua rescisão. O caso foi um dos mais ruidosos fechados até agora. Joesley gravou uma conversa com Michel Temer para conseguir o acordo com a PGR. No diálogo, ficava no ar a impressão de que Temer apoiava o pagamento de uma mesada a Eduardo Cunha para que o ex-presidente da Câmara não delatasse atos de corrupção no governo do emedebista. Joesley conseguiu o benefício máximo: não ser denunciado e não ir para a cadeia. A história sofreu uma reviravolta depois da revelação de que Joesley havia omitido informações na delação, entre elas a de que contara com a ajuda de um importante ex-colaborador de Janot, o procurador Marcelo Miller. O STF ainda não julgou se essa delação deve ser cancelada. Um caso exemplar na linha do que não se deve fazer foi o do então senador Delcídio do Amaral. Nos 29 anexos que firmou com a PGR, ele relatou crimes contra empresários e políticos. Graves, as denúncias provocaram até prisões. Mas a própria Justiça depois decidiu que não havia provas suficientes para denunciar os delatados. Cassado pelo Senado e preso por 87 dias, Delcídio cumpriu pena de um ano e seis meses em regime equivalente ao domiciliar semiaberto. Agora, depois de um longo processo de erros e acertos, o Ministério Público está bem mais rigoroso em relação às delações sem provas. Enquanto isso, a PF, novata na utilização do mecanismo, tem celebrado acordos em bases pouco sólidas.
Apesar da polêmica, a colaboração premiada já se provou um potente instrumento de combate à corrupção. Não fossem revelações como as feitas pelo ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o petrolão não viria à tona. Costa fechou a primeira delação da Lava-Jato em 2014. Além de devolver 80 milhões de reais, revelou a existência de um cartel de empreiteiras que se revezavam para ganhar contratos da petroleira, apontando, inclusive, o porcentual que elas devolviam a executivos da estatal, políticos e operadores do esquema. Como prêmio, saiu da cadeia e passou um período em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Livrou também a família de punições semelhantes. Essa é a essência do direito premial, amplamente aplicado nos Estados Unidos desde 1977 e a partir da década de 90 na Itália.
Em meio às discussões para o aprimoramento dessa ferramenta no Brasil, é preciso ver o que ocorrerá com a delação de Cabral, que comandou por anos um dos maiores esquemas de corrupção do país. Nos bastidores, acredita-se que seus relatos incluirão membros do Judiciário, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, um grande número de políticos e até sua mulher, Adriana Ancelmo. A questão é saber se é mais um caso de alguém que promete grandes revelações para escapar de penas mais duras e, no final, em vez de uma bomba, entrega um punhado de denúncias vazias.
Com reportagem de Eduardo Gonçalves
Leia, na íntegra, o posicionamento da JBS sobre a reportagem
A J&F esclarece que não houve omissão nos relatos de seus executivos ao Ministério Público Federal. A verdade é que o esforço para rescindir os acordos de colaboração tem como objetivo final anular as provas que dele resultaram. Além dos 4.600 documentos entregues ao MPF para corroborar aquilo que disseram em 2017, os colaboradores do grupo já prestaram mais de 100 depoimentos em investigações abertas em decorrência do acordo.
É preciso deixar claro: a própria Justiça já estabeleceu que Marcelo Miller não cometeu crime. Ainda assim, um dos colaboradores apresentou anexo negativo, detalhando os contatos que tiveram com Miller e que não configuraram conflito algum.
O benefício da não denúncia concedido aos colaboradores do grupo está previsto em lei, e consta de acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal. Em troca, os executivos não apenas contaram tudo o que sabiam como assumiram os riscos de participar de ações controladas, a pedido do Ministério Público Federal.
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674