No fim dos anos 90, quem tinha cabeça investia em gado. Ao menos era o que diziam as propagandas das Fazendas Reunidas Boi Gordo nos intervalos da novela O Rei do Gado, da Globo. Elas incentivaram milhares de brasileiros a apostar em títulos da empresa, de olho na promessa de lucros superiores a 40% em dezoito meses, advindos da criação de bezerros nelore em fazendas do Sudeste e Centro-Oeste. Como se descobriu depois, tudo não passava de um grande golpe — aliás, um dos maiores já aplicados no país. A pirâmide financeira que remunerava seus clientes com o dinheiro de novos investidores ruiu deixando um rastro enorme de prejuízos: 6 bilhões de reais evaporaram e 32 000 pessoas foram prejudicadas.
A novela real já dura dezessete anos, mas agora caminha para o final. No mês passado, os desembargadores da 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo concluíram a análise dos dois últimos recursos que tentavam impedir que sete pessoas físicas e sete empresas fossem declaradas corresponsáveis pelas dívidas e tivessem seus bens usados para ressarcir os credores. Foram mapeadas cerca de oitenta propriedades rurais, somando 2 bilhões de reais, no Nordeste e Centro-Oeste, que irão a leilão. A estimativa é que sejam arrecadados 600 milhões de reais.
O valor que deverá ser recuperado pelas vítimas pode ser pequeno, mas o trabalho para chegar a ele foi grande. Esse patrimônio acabou sendo descoberto após uma investigação privada em cima dos rastros da massa falida da empresa, sob a supervisão do Ministério Público. Ex-policiais federais percorreram oito estados e mapearam repasses feitos a offshores americanas do dinheiro desviado dos credores. No caminho, depararam até com um executivo por trás da dilapidação dos bens, mas que só existia no papel. E o fio da meada para chegar a ele foi longo.
A Boi Gordo pertencia a Paulo Roberto de Andrade, que foi capaz de manter o esquema rodando até 2001. Nessa época pipocaram as primeiras queixas de clientes que não conseguiam sacar seus recursos. A dúvida afastou novos investidores e inaugurou a temporada de vacas magras. Em 2003, já em concordata, Andrade vendeu a Boi Gordo a dois grupos do Sul, Golin e Sperafico, que nomearam José Roberto da Rosa como gerente. A empresa faliu em 2004, mas entre a venda e o fim do negócio desfez-se de fazendas, maquinário, gado e sêmen para reprodução. Os investigadores descobriram, então, que Rosa só existia em procurações, que seu RG e seu CPF foram feitos a partir de uma certidão de nascimento falsa e que suas assinaturas saíram do punho de um contador da Golin. A conclusão a que se chegou foi de que a venda dos bens sob sua gestão serviu para desviar recursos, que foram enviados para o exterior e voltaram ao Brasil em esquemas de lavagem de dinheiro, com a compra de fazendas. São essas propriedades que agora irão a leilão.
Antes de chegar a essa fase do processo, uma pequena parte do prejuízo já havia sido recuperada. Quando faliu, a Boi Gordo tinha em seu nome dezessete fazendas, que foram leiloadas entre 2017 e 2018 e renderam 540 milhões de reais. O valor, no entanto, só começou a ser destinado, em julho deste ano, a 7 000 credores membros da Associação dos Lesados pela Boi Gordo — mas apenas 50% do valor investido e sem correção monetária. “O que a gente está conseguindo fazer é diminuir o prejuízo”, diz o presidente da entidade, José Luiz Silva Garcia.
Na fila de espera do dinheiro desse leilão e do próximo tem muita gente famosa. Com um marketing agressivo, a Boi Gordo fazia ações até em churrascos de jogadores de futebol. “Eu ganhei os papéis de quinze cabeças de gado de presente de aniversário do Edilson. Todo mundo estava comprando. Aí, investi 120 000 reais pouco antes de ir jogar na Inter de Milão. Quando voltei, soube da falência pelo jornal. Nunca mais vi a cor do dinheiro”, relembra Vampeta, campeão com a seleção na Copa de 2002, assim como Edilson. Entre as celebridades que ficaram no prejuízo, estão também nomes como a atriz Marisa Orth, o designer gráfico Hans Donner e até Antonio Fagundes, que era o protagonista da novela e o garoto-propaganda da Boi Gordo.
Apesar do grande número de vítimas e do barulho que o caso provocou, ninguém foi punido criminalmente. Paulo Roberto de Andrade chegou a ser processado por estelionato, mas o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela prescrição em 2009. O que restou foi o alerta a futuros investidores. As pirâmides financeiras são esquemas que prometem lucro rápido e, muitas vezes, estão escondidas sob fachadas de negócios respeitáveis, até com carimbo da Comissão de Valores Mobiliários, como a Boi Gordo. Em tempos em que fazem sucesso negócios mirabolantes — como o esquema de Glaidson Acácio dos Santos, o “faraó dos bitcoins”, que movimentou 2 bilhões de reais e também enganou celebridades, como o humorista Rafael Portugal —, é interessante olhar para trás. Afinal, como ensina o ditado, é o olho do dono que engorda o boi.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763