Guerras e grandes desastres naturais estão entre os principais geradores na história de grandes fluxos de imigração. No caso do Brasil, que não enfrenta nenhuma dessas catástrofes (felizmente), mas sofre no momento com duas crises agudas (sanitária e econômica), o ceticismo com relação a um futuro melhor tem levado um número recorde de pessoas a tentar a vida no exterior. A onda que vinha crescendo desde 2015 ganhou maior velocidade nos últimos dois anos, mesmo com fronteiras fechadas por um bom tempo durante a pandemia. Segundo dados recentes do Ministério das Relações Exteriores, há 4,2 milhões de brasileiros vivendo longe do país, um aumento de quase 20% sobre o número de 2018. Isso é ainda mais impressionante quando se considera que o dado não computa com precisão quem saiu daqui e se encontra em situação ilegal lá fora. Estimativas falam em até 50% a mais de gente nessa condição, o que elevaria para acima de 6 milhões o volume da diáspora.
Além do patamar inédito, o perfil dessa debandada tem características novas, a começar pela mudança do perfil de parte considerável dos imigrantes. O desalento com o Brasil é amplo, geral e irrestrito e o aeroporto tem sido a única saída para quem busca qualidade de vida e carreiras mais atraentes. O presidente Jair Bolsonaro, que nunca disfarçou seu desapreço pela produção de conhecimento, conseguiu a façanha de acentuar o perfil de quem vai embora para oferecer a países desenvolvidos a excelência que faz falta aqui: é cada vez maior o número de famílias com integrantes com ao menos um diploma de ensino superior indo embora, sem intenção alguma de voltar. Entre 2019 e 2020, o Brasil caiu da 63ª para a septuagésima posição no quesito retenção de talentos em um ranking global de competitividade, elaborado pela instituição Insead. Uma verdadeira “fuga de cérebros”. “É um problema de falta de perspectiva”, afirma Vanessa Cepellos, professora de gestão de pessoas da FGV. “O salário aqui acaba sendo mais baixo e o custo de vida, muito alto. A conta não fecha e os profissionais acabam buscando outras oportunidades.”
Além do aumento de quase 20% entre 2018 e 2020 no número de brasileiros morando fora, os números estimados pelo Itamaraty revelam o surgimento de novos destinos de preferência. O aumento mais notável foi registrado na Irlanda, onde a comunidade brasileira mais que triplicou e, de uns anos para cá, tornou-se o lugar favorito de intercambistas atraídos por preços de cursos mais em conta do que no vizinho Reino Unido e por um visto que permite conciliar estudo e trabalho. Quem vai para o país também conta com oportunidades nas áreas de tecnologia, saúde ou finanças. “Tenho um padrão de vida aqui que não teria no Brasil”, afirma o executivo de marketing digital Matheus Teodoro, de 29 anos, que mora desde 2019 em Dublin com a esposa, também brasileira. A história é semelhante à do consultor em segurança da informação Deivid Luchi, 29, que chegou a prestar serviços para grandes bancos no Brasil trabalhando em Porto Alegre, mas trocou o país pela Austrália em busca de melhores oportunidades e hoje procura profissionais daqui para compor a equipe que lidera em Melbourne. “Os brasileiros são muito bem reconhecidos e valorizados internacionalmente”, diz.
A Austrália, aliás, investe pesado para atrair estrangeiros qualificados. O setor educacional chega a superar o volume de receitas geradas pelo turismo no país — 38,4 bilhões de dólares no último ano. O país concorre com potências como o Canadá, que conta com mais de sessenta programas governamentais para atrair mão de obra estrangeira. No caso australiano, uma das joias de sua política de imigração é o programa de visto para talentos globais, criado em 2019 para atrair profissionais altamente qualificados em suas áreas de atuação. Foi dessa forma que a química Adriana Pires Vieira, natural de São Luís, no Maranhão, partiu para o outro lado do mundo. Após o fim de seu contrato como pesquisadora na Universidade de São Paulo, em novembro de 2018, ela embarcou levando na bagagem um doutorado na Unicamp e um pós-doutorado na USP. Hoje mora em Perth, na costa ocidental da Austrália, onde pesquisa energia renovável e vive com o namorado, também pesquisador na Universidade Curtin. “O país que me formou não aproveitou o conhecimento que eu tinha a oferecer”, lamenta Adriana.
A queda nos investimentos em pesquisas também tem sido determinante para o êxodo. Uma nota técnica do Instituto de Pesquisas Econômicas mostra que os gastos do governo Bolsonaro em ciência e tecnologia somaram 17 bilhões de reais em 2020, um nível inferior ao observado em 2009 (19 bilhões em valores reais). O desalento com a área de pesquisa também levou a advogada Thais Cossetti, 29, formada pela Universidade Federal de Ouro Preto a fazer o caminho inverso dos colonizadores portugueses. Desde 2019, ela fixou residência em Coimbra, que abriga uma das mais antigas universidades do mundo, onde foi aprovada para um programa de mestrado em sociologia, um doutorado em economia política e conseguiu a licença para atuar como advogada em Portugal. Um drama familiar em particular (a morte da avó) chegou a fazê-la repensar a escolha no início deste ano, mas o tempo que passou aqui em uma visita para se despedir ajudou a sedimentar a decisão de permanecer em Portugal. “Eu fui para ficar duas semanas, mas, com o fechamento dos aeroportos por causa da pandemia, acabei ficando quase três meses e vi os preços nos supermercados e a situação de amigos com dificuldade para conseguir emprego”, recorda. Além de não ter a barreira do idioma e oferecer processos seletivos em universidades que aceitam a nota do Enem, os portugueses estão de olho nos profissionais de tecnologia: desde julho de 2019, a concessão de vistos específicos para brasileiros dessa área aumentou mais de 400%. Ainda na Europa, a Alemanha alterou sua legislação para facilitar a entrada de imigrantes para preencher mais de 1 milhão de vagas. Na Itália, pequenos vilarejos aproveitam a difusão do home office e tentam não sumir do mapa com subsídios para atrair moradores.
Com o clima tão bucólico quanto o interior da Itália e IDH superior ao do Brasil, o Uruguai virou outro polo de atração de brasileiros. No país que se notabilizou por levar adiante pautas progressistas como a legalização das drogas e do aborto, a população de brasileiros mais que dobrou nos últimos anos. Mas foi a economia mais estável e uma oportunidade de emprego melhor que levaram o engenheiro Everton de Almeida Lucas, 31, a instalar-se em Montevidéu, onde trabalha em uma empresa de energia eólica e dá aulas na Universidade Tecnológica do Uruguai (Utec). “Aqui os programas de incentivo educacional não mudam conforme o governo”, diz.
Mesmo com novos destinos, os Estados Unidos ainda são a referência quando se pensa em morar fora. O país abriga a maior comunidade brasileira no exterior, com 1,7 milhão de pessoas atraídas por mais segurança, educação superior de qualidade e salários mais competitivos. Recentemente, o país reduziu de 1,8 milhão para 900 000 dólares o piso para atrair investidores estrangeiros que queiram o green card, o famoso visto de permanência. A atratividade do destino gerou um efeito colateral no vizinho México. A população de brasileiros estimada lá é de 45 000 pessoas — sendo apenas 15 000 regulares. O país latino virou a principal rota terrestre para quem, por falta de informação ou puro desespero, tenta chegar aos Estados Unidos à margem dos rigorosos processos de imigração americanos e com riscos à própria vida.
A tragédia mais recente foi a da técnica de enfermagem Lenilda dos Santos, 50, encontrada morta no deserto após ser abandonada pelo grupo com quem tentou atravessar a fronteira. Calcula-se que um terço dos turistas que entram no país (cerca de 400 000 em 2019, antes da pandemia) viaja com a intenção de se bandear para os Estados Unidos. “As migrações econômicas são as mais preocupantes porque as pessoas que saem do Brasil a qualquer custo acabam não tendo condições de sobreviver nos países para onde vão”, diz Angela Tsatlogiannis, especialista em direito internacional. O roteiro dos coiotes, como são conhecidos os atravessadores, que chegam a cobrar 20 000 dólares no pacote de quem quer se aventurar em uma jornada com altas chances de fracasso, inclui entradas via Cidade do México ou Cancún — aqui, o turismo é apenas um álibi para quem quer vencer a primeira barreira dos agentes de fronteira. Muito embora a chegada do democrata Joe Biden tenha servido ao “marketing” dessas quadrilhas para atrair vítimas ao esquema de imigração ilegal, nada mudou na prática: os Estados Unidos não só retomaram as deportações em massa por via aérea como a Suprema Corte determinou o restabelecimento da política “Fique no México”, instituída por Donald Trump, em que os imigrantes são devolvidos ao país vizinho e precisam aguardar em território mexicano a improvável decisão sobre um pedido de asilo.
Pródigo em crises econômicas que dão impulso à busca de uma vida melhor lá fora, não é a primeira vez que o Brasil vive um boom de imigração. Nos anos 80, a década perdida marcada pela hiperinflação, intensificou-se a mudança de pessoas (boa parte ilegais) para os Estados Unidos. Foi nesse mesmo período que descendentes de japoneses fizeram o caminho inverso de seus antepassados e rumaram ao Japão, onde os dekasséguis, incentivados pelo governo, foram para suprir a necessidade de mão de obra na indústria do país e enviar dinheiro para os familiares que aqui ficavam. “Hoje, a insegurança política juntamente com a crise econômica criam uma certeza de que o Brasil não dá certo”, afirma Sueli Siqueira, professora da Universidade Vale do Rio Doce, de Governador Valadares (MG), um dos polos exportadores de imigrantes aos Estados Unidos. A desesperança atinge hoje tanto os mais humildes quanto as pessoas com mais recursos e é o motor que produz recordes de brasileiros vivendo mundo afora.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757