Em uma das últimas ocasiões em que esteve ao lado do presidente Jair Bolsonaro, em 5 de outubro, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) fez uma reclamação. Diante de um auditório com centenas de pastores na Igreja Batista Central de Brasília, disse que a sua equipe trabalha muito, mas não tem orçamento suficiente. A cifra anual destinada à pasta, de 606 milhões de reais, está mesmo entre as menores da Esplanada, mas números do próprio governo indicam que o principal entrave da pasta não é o dinheiro. O ministério é o único que utilizou menos da metade da verba à disposição em 2021: até novembro, só 43% do total. À primeira vista, ter uma autoridade economizando em momento de crise poderia ser motivo de aplausos. Só que quando há uma diferença muito grande entre o planejado e o executado, como no caso de Damares, fica evidente um problema grave de gestão. Um dia antes do desabafo contraditório de Damares, o Ministério Público Federal já havia feito esse mesmo diagnóstico, abrindo um inquérito para saber por que ela gastara tão pouco no ano passado (46,5%).
A baixa produtividade afetou até algo caro ao bolsonarismo, ao menos no discurso. Para enfatizar uma de suas prioridades, o presidente mandou acrescentar a palavra “família” ao nome oficial do antigo Ministério dos Direitos Humanos. O negócio ficou só na retórica. Com Damares, a pasta reservou uma parte do orçamento para três programas ligados ao tema. A maior parte, no entanto, continua no cofre: de 6,4 milhões de reais, apenas 1,2 milhão de reais foi empenhado. A Secretaria Nacional da Família, criada na atual gestão, é o departamento do ministério com o menor número de convênios e parcerias assinadas.
Na prática, a falta de empenho nesses programas significa menos contratações de assistentes sociais, tutores e educadores, e menos famílias atendidas. A vitrine da secretaria é o programa Famílias Fortes, que visa a aconselhar moradores de lares problemáticos e carentes que tenham crianças entre 10 e 14 anos. Lançado no fim de 2019, o programa ficou dez meses parado. Os contratos firmados até agora preveem atender cerca de 3 000 famílias a um custo de 2,6 milhões de reais. Para efeito de comparação, um programa estadual lançado em São Paulo em março deste ano, o Prospera Família, tem 12 000 famílias inscritas e orçamento de 63 milhões de reais.
Outra bandeira de Damares que anda em marcha lenta é a política de enfrentamento à violência contra mulheres — somente 4,5% da verba reservada foi empenhada até agora. A falta de financiamento ocorreu mesmo durante um período em que as contratações foram facilitadas e créditos extraordinários liberados por causa da pandemia. No mesmo período, aliás, a violência doméstica cresceu. “Não há uma explicação razoável para isso”, critica a antropóloga Carmela Zigoni, assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos. Procurado por VEJA, o ministério de Damares disse por meio de uma nota que não implementa nenhuma ação sem contar com um parceiro público ou privado responsável por executar os projetos. Sobre a demora para celebrar tais acordos, nenhuma justificativa razoável.
A ineficiência da pasta foi um dos motivos para a perda de prestígio da titular. Principal representante da ala evangélica no governo, Damares chegou a ser cotada para vice de Bolsonaro em 2022. Hoje está entre os ministros que menos circulam no entorno do presidente. Desde o início de setembro, esteve em três eventos com o chefe, sendo um deles a manifestação do Dia da Independência em Brasília. O futuro político dela é uma incógnita. O presidente do Republicanos, Marcos Pereira, diz que ainda há a possibilidade de levá-la para o partido e colocá-la na disputa por uma vaga no Congresso. Líderes do PP afirmam que o convite para uma candidatura ao Senado por Sergipe está de pé. Damares, no entanto, tem declarado que será apenas cabo eleitoral de Bolsonaro em 2022 — de novo com a bandeira da defesa da família. O difícil vai ser colar esse discurso justamente no tema em que ela ficou mais devendo.
Orçamento tardio
O ministério reforçou que precisa de parceiros e que não faz transferências diretas de recursos — uma modalidade da qual outros ministérios dispõem. “Toda iniciativa do ministério requer a celebração de um instrumento administrativo de parceria, seja um convênio, um contrato de repasse ou um termo de fomento ou de colaboração, seja um termo de execução descentralizada”, diz a pasta.
O ministério informou, ainda, que a aplicação do dinheiro atrasou por causa da aprovação tardia da Lei Orçamentária Anual (LOA), que determina os valores destinados a cada pasta. A LOA normalmente é votada no fim do ano anterior, mas a de 2021 só foi aprovada em abril. “Sua execução está sendo realizada, mas requer a celebração dessas parcerias, o que, num cenário de aprovação de LOA tardio, adiou a conclusão delas”, diz.
A pasta também diz que a destinação de recursos é técnica. “Os dirigentes do MMFDH não fazem demagogia com as pautas caras ao governo federal, atinentes à proteção das mulheres, crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiências, comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas e pessoas LGBTs”, afirma.
Segundo o ministério, o programa Famílias Fortes tem um total de 2 milhões de reais reservados até o momento, entre valores pagos e empenhados, e que outros 4,7 milhões de reais serão investidos no programa.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766