Se não bastasse o rastro de milhares de mortes que a Covid-19 vem produzindo diariamente no país, a pandemia começa a desenhar outra tragédia dentro das prisões. Nas últimas semanas, o novo coronavírus passou a se alastrar com mais velocidade pelas celas superlotadas, aumentando a tensão em um ambiente já muito conturbado por guerras entre facções e várias epidemias, como a tuberculose. VEJA obteve o levantamento mais recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que quantificou o ritmo da evolução do problema. A partir de 1º de maio, os casos de contaminação entre os detentos saltaram de 243 para 1 406, o equivalente à evolução de 478% em apenas quatro semanas. No mesmo período, os registros da doença cresceram 475% entre os policiais penais. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 38 presos morreram até agora. Da parte dos servidores, foram 36, conforme a contagem da Federação Nacional Sindical dos Servidores Penitenciários. Considerando-se que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta (770 000, de acordo com o último Censo), a possibilidade de a situação sair do controle é real — e assustadora. Efeitos colaterais da crise já começam a aparecer no sistema na forma de aumento de tentativas de fugas e de rebeliões.
O quadro é tão preocupante que o CNJ pediu aos tribunais na semana passada um levantamento quinzenal mais aprofundado sobre a condição da doença nos cárceres. Para se ter uma ideia, na última vistoria que fez no presídio de Monte Cristo, em Roraima, em fevereiro, o presidente da Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário da OAB, Everaldo Patriota, deparou com presos bebendo água do mesmo cano de chuveiro e com celas para quatro pessoas com dezesseis detentos amontoados. “É evidente que é uma situação explosiva”, diz o advogado. No sistema prisional, o maior foco de contaminação se concentra no Complexo da Papuda, em Brasília, que tem 681 casos confirmados de Covid-19 — 584 detentos e 97 policiais. Não por coincidência é a penitenciária que mais faz testes no Brasil. Em 17 de maio, morreu vítima da enfermidade o primeiro policial penal que trabalhava na Papuda, Francisco de Souza, de 45 anos. Por mais de uma semana, ele dividira um quarto de enfermagem no Hospital Regional da Asa Norte com o preso Álvaro Sousa, 32, que também era da Papuda e faleceu três dias depois.
A primeira medida de proteção específica para o sistema em meio à pandemia foi tomada em março, com a proibição das visitas de familiares, estendida também a advogados em vinte estados. Ela revelou-se insuficiente para deter o avanço do problema. Até o mais protegido e isolado dos presídios não passou ileso. A Penitenciária Federal em Brasília, que abriga de líderes do PCC (Marcola) a mafiosos italianos (Nicola Assisi), registrou a primeira ocorrência de Covid-19 em suas dependências no último dia 19. O detento, que não teve a identidade revelada, havia acabado de ser transferido de Pernambuco já infectado pelo coronavírus. O estado vem enfrentando distúrbios nas cadeias como o de 18 de maio, quando houve uma tentativa frustrada de resgate de um chefão do Comando Vermelho da Penitenciária de Itaquitinga (PE). Cinco bandidos armados trocaram tiros com os policiais na porta do presídio, mas fugiram de lá deixando pelo caminho uma escada e uma mala cheia de explosivos. Manaus, no Amazonas, em colapso por causa da doença, também vive problema semelhante.
Com uma situação que remete a um barril de pólvora, o Brasil corre o risco de repetir os exemplos de Itália e Colômbia, que viram eclodir dezenas de rebeliões simultâneas durante a pandemia. O temor de quem está atrás das grades por aqui é cada vez maior. “A população carcerária sabe exatamente o tamanho do problema que está sendo enfrentado lá fora”, afirma Nivaldo Restivo, o secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, estado que computou o maior número de detentos mortos até o momento (doze). Alguns relatos dão conta de que líderes do PCC em São Paulo chegaram a vetar a entrada de guardas sem máscara em pavilhões e suspenderam os ônibus que transportavam os parentes aos presídios, antes de o governo proibir as visitas. Em um país no qual o crime organizado já domina boa parte da vida dentro das penitenciárias, só faltava mesmo essas gangues assumir as ações contra a Covid-19 por não haver uma presença mais efetiva do Estado no sistema. Seria o fundo do poço.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689