No fim de semana surgiram nas redes sociais muitos comentários sobre um suposto complô para classificar indevidamente várias mortes como sendo provocadas pela Covid-19. Segundo essa absurda teoria conspiratória, o objetivo seria exagerar o alcance da doença a fim de provocar pânico entre a população. A história que deu origem a vários posts nessa linha foi a de um morador da região metropolitana do Recife. De acordo com boatos publicados em canais como o Twitter, a morte dele teria sido provocada por um acidente (um estouro de pneu), e não por coronavírus, conforme chegou a constar no atestado de óbito.
Uma confusão do hospital Maria Lucinda no preenchimento do documento deu combustível para o boato. O paciente em questão, um homem de 57 anos, deu entrada no dia 21 de março no local com um quadro de grave insuficiência respiratória. Com o agravamento do seu estado de saúde, os médicos realizaram o teste do coronavírus, mas o exame não ficou pronto a tempo: o paciente morreu no dia 23. Mesmo assim, o atestado de óbito cravou como causa de morte a Covid-19. A suspeita, porém, não se confirmou. Quando o teste ficou pronto, descobriu-se que morte havia sido provocada por outro vírus, o Influenza A. Os documentos sobre o caso foram atualizados e o episódio não entrou para as estatísticas da Covid-19 no estado do Pernambuco.
O boato de que a causa da morte teria sido provocada por um estouro de um pneu ganhou força por uma coincidência. Cerca de vinte dias antes de ser internado com insuficiência respiratória, o mesmo homem sofreu um acidente na borracharia onde trabalhava, em Recife. Segundo testemunhas do caso ouvidos por VEJA, o estouro não provocou ferimentos visíveis na vítima. O homem não quis ir para o hospital apesar da insistência das pessoas que viram a cena. Trabalhou normalmente naquele dia e nos dias seguintes. Somente depois de aproximadamente três semanas começou a passar mal por insuficiência respiratória. “Só ouvi o barulho forte da explosão que arremessou ele três metros da calçada (onde estava fazendo um serviço) para dentro da borracharia. Corremos, o caminhoneiro dono do pneu e eu, para socorrê-lo. A camisa dele estava rasgada e ele muito suado, mas sem cortes ou fraturas”, conta Ivan Gonzaga, 49 anos, que há quatro meses vende churros no ponto em frente à borracharia. Após o susto, Gonzaga conta que o borracheiro tomou uma “cerveja preta e voltou para o serviço”. “Terminou de consertar o pneu do cliente e só foi embora duas horas depois do ocorrido, às 20h. No dia seguinte, voltou a trabalhar normalmente”, diz.
A cozinheira Maria Graça Silva, 45 anos, que vendia almoço diariamente há mais de 10 anos para o borracheiro, recorda que ele ficou ainda mais calado após o acidente, o primeiro desde que ela o conheceu. “Ele passou a chegar mais tarde ao trabalho e a sair mais cedo. Pegava o almoço tarde, às vezes nem tocava na comida”, afirma. Graça diz que antes e depois do acidente ele não demonstrou nenhum sintoma como espirros, torre, febre ou falta de ar, mas tinha histórico de episódios de pneumonia. “O que ele reclamou foi da barriga que inchava quando tomava algum líquido. Os pés dele também ficaram inchados na semana antes de ele ser socorrido”, explica.
A deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) foi uma das pessoas que compartilharam posts no domingo 29 sugerindo que morte de Recife faria parte do complô para inflar os números da Covid-19 e levantando a suspeita de que o óbito em questão havia sido provocado, na verdade, pelo tal acidente na borracharia. Momentos depois, ela apagou o post. Mais tarde, a deputada publicou vídeos voltando a sustentar a mesma tese. Nesta segunda, 30, VEJA a procurou para que comentasse a nota do Maria Lucinda e pediu a ela maiores esclarecimentos a respeito da relação que a deputada faz entre o estouro de um pneu e uma morte por Influenza A, ocorrida três semanas depois. “O hospital que emitiu o atestado de óbito reconheceu o erro”, afirmou a deputada. “Não foi coronavírus. Foi uma gripe que o matou em decorrência de uma pneumonia em razão do estouro de um pneu de caminhão em seu tórax em janeiro”. A deputada aproveitou também a ocasião para cobrar a retificação de veículos como VEJA que a acusaram de espalhar fake news relacionada ao caso. Na noite de domingo, 19, o site de VEJA havia publicado reportagem que cita, de forma equivocada, que Kicis se baseou em um atestado de óbito falso para construir sua teoria conspiratória. Como não tem compromisso com falsas informações, VEJA retifica aqui o trecho da reportagem em questão e pede desculpas à deputada pelo equívoco. O atestado de óbito exibido por ela era verdadeiro.
VEJA enviou o seguinte questionamento a Bia Kicis. “Deputada, com qual base a senhora relaciona o estouro do pneu à morte por Influenza? Tem algum laudo ou atestado médico que relacione uma coisa com outra?”. Em áudio enviado à revista, ela afirmou o seguinte: “Não fui eu que relacionei, foi a família dele que relacionou. Mas isso não é o principal. O Brasil não está interessado em saber se ele morreu de estouro de pneu ou de gripe, o Brasil quer que fique claro é que ele não morreu de coronavírus, como foi colocado no atestado de óbito dele”.
O diretor do Hospital Maria Lucinda, Luiz Alberto Pereira de Araújo, disse a VEJA que a instituição é uma unidade de retaguarda que só recebe pacientes em caso de urgência e emergência e reiterou que o suposto acidente não consta no prontuário. Segundo ele, a associação entre o acidente com pneu e a pneumonia provocada pelo Inluenza A não foi feita pelo hospital e que a UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) encaminhou o paciente já com quadro grave de problema respiratório. Como ele já estava internado no Maria Lucinda quando morreu, não havia a necessidade de encaminhá-lo ao IML (Instituto Médico Legal), por isso a médica fez o atestado de óbito. A causa da morte foi insuficiência respiratória, e a Covid-19 foi incluída como fator que poderia ter causado a morte. O exame ficou pronto três dias depois e, nesse meio-tempo, foi recomendado que a família ficasse em isolamento, já que se tratava de um caso suspeito.