O debate sobre os “jabutis” é antigo, e todos os atores envolvidos na questão têm uma opinião crítica sobre o tema, mas, como é conveniente para a maioria, ninguém move uma palha para acabar com o problema — muito pelo contrário. Na semana passada, o Congresso aprovou um projeto que recriou o antigo seguro obrigatório para veículos (DPVAT), extinto no governo Bolsonaro. A nova lei obriga proprietários de carros, caminhões e motocicletas a recolher um valor anual que será usado para indenizar vítimas de acidentes de trânsito. A proposta dividiu o Congresso. Para a ala governista, é uma medida importante, de grande alcance social, que vai garantir algum tipo de proteção para quem não tem condições de ter um seguro privado. Para os oposicionistas, tão-somente mais um imposto que recai sobre os ombros dos contribuintes e que servirá apenas para aumentar a já pesada carga tributária. Apesar das posições absolutamente antagônicas, o texto foi aprovado pela maioria dos deputados e senadores porque houve um ponto de consenso que acabou unindo os dois lados.
Um dos artigos da lei aprovada autorizou o governo a antecipar para o primeiro semestre do ano gastos que não estavam previstos no orçamento. Por acordo, o governo pretende reservar parte desses recursos para custear emendas parlamentares. Com as contas apertadas, o governo ganha um alívio de caixa. Já os parlamentares terão à disposição mais um volume considerável de verbas para enviar às suas bases eleitorais. A regra aprovada é questionável sob o ponto de vista fiscal, mas o problema está num outro detalhe: a flexibilização do orçamento e a liberação do dinheiro para os congressistas não têm nenhuma relação direta com a lei que recriou o seguro obrigatório. É o clássico “jabuti”, apelido que se dá a demandas estranhas que brotam nos projetos em tramitação no Congresso. A prática, que não é nova, atende a interesses às vezes inconfessáveis, geralmente envolve temas controversos, quase sempre colide com o interesse público e continua sendo usada de forma sorrateira.
No projeto do DPVAT, o interesse do governo era financeiro. Estima-se que o novo imposto carreará 7 bilhões de reais aos cofres públicos a partir do ano que vem. Ocorre que, às vésperas da votação, o presidente Lula vetou uma proposta aprovada pelo Congresso que disponibilizava aos deputados e senadores 5,6 bilhões em verbas do orçamento. Como forma de protesto, os parlamentares ameaçaram rejeitar o projeto de criação do imposto. Para superar o impasse e evitar uma derrota, negociou-se uma alternativa que atendesse às duas partes. Ficou combinado que o governo seria autorizado a antecipar gastos de 15 bilhões de reais. Em troca, desse total, 3,6 milhões seriam destinados ao pagamento das emendas vetadas. Num processo normal, uma proposta assim levaria meses para ser analisada. Por isso, o deputado Rubens Pereira Junior (PT-MA), relator do DPVAT na Câmara, inseriu-a no projeto do seguro obrigatório — e assim o mais recente “jabuti” se transformou em lei imediatamente. Como sempre, há uma justificativa para lançar mão do ardil: “Nesse caso, não foi ‘jabuti’, porque não era medida provisória. O plenário é soberano”, explicou o parlamentar.
O “jabuti” formalizado pelo deputado petista, um dos vice-líderes do governo na Câmara, foi justificado com o nome pomposo de cláusula de performance de receita. Consultado sobre a proposta, até o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que sempre pregou praticamente sozinho contra esses penduricalhos legislativos que usualmente drenam os cofres públicos, se rendeu. Em tese, parlamentares estão impedidos de apresentar emendas sem pertinência temática com o assunto original apenas a medidas provisórias, o abrigo preferido das gambiarras. Por terem validade de apenas 120 dias, elas precisam ser votadas a toque de caixa, caso contrário, perdem a eficácia. Deputados e senadores, por isso, continuam usando a urgência como atalho para aprovar leis de seu interesse, de interesse do governo e, às vezes, de ambos, como no caso do seguro obrigatório. “Por questão de conveniência e, acima de tudo, por acordo político, acabam-se sobrepujando as diversas etapas normais do processo legislativo para se ter a conversão em lei mais rapidamente”, explica Cesar van der Laan, consultor legislativo do Senado.
Um “jabuti” foi o responsável, por exemplo, pelo adiamento da votação, na última semana, do projeto que cria um programa ambiental que prevê incentivos fiscais a montadoras que produzirem veículos menos poluentes. De última hora, o texto ganhou um artigo que revoga a isenção de taxas para compras on-line no exterior de valor inferior a 50 dólares. Segundo projeções do Ministério da Fazenda, o governo poderia turbinar a arrecadação federal em até 8 bilhões de reais. O problema, de novo, é que uma coisa nada tem a ver com a outra. Embora seja uma medida correta, a taxação dos sites chineses não vai diminuir a poluição provocada pelos automóveis. O relator da matéria, deputado Átila Lira (PP-PI), tem uma justificativa para o remendo. “O projeto trata da indústria automobilística. Mas se temos uma demanda, se estou tratando da neoindustrialização, por que não ajudar o setor produtivo com essa ferramenta?”, defende. No ano passado, a proposta de taxar as pequenas compras chegou a ser discutida pelo governo, repercutiu muito mal e acabou adiada — reaparecendo agora em forma de “jabuti” ecológico.
Há exemplos de “jabutis” ainda mais curiosos. Na tramitação da medida provisória que regulamentava o mercado de apostas esportivas no país, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), ex-presidente do Congresso, apresentou uma emenda que zerava por cinco anos alíquotas de imposto das empresas ligadas ao setor de shopping centers — proposta que também não guardava nenhuma relação com apostas esportivas. O parlamentar justificou que os empresários do ramo ainda não tinham se recuperado dos prejuízos provocados pelo fechamento das lojas durante a pandemia de covid-19. Esse “jabuti” assistencial, porém, não escalou, ao contrário de outro parecido, apresentado pelo deputado José Guimarães (PT-CE). Líder do governo na Câmara, o parlamentar relatou uma proposta que prorrogava isenções tributárias para o setor aéreo. Ele inseriu no texto um artigo que destinava mais de 400 milhões de reais dos cofres do Sesc e do Senac para programas de promoção do turismo internacional no Brasil. A estranha emenda foi aprovada, mas acabou vetada pelo presidente Lula, depois de muita pressão das lideranças ligadas ao comércio. Um caso incomum de jabuti que desceu da árvore.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893