Embora não tivessem sido muitas, o país ensaiou tentativas de modernizar a gigantesca máquina do serviço público, mas quase todas resultaram em fracasso. Mesmo os militares, que sempre sonharam com o Estado grande, chegaram a ensaiar um passo na direção de diminuir essa gordura, embora para isso tivessem gestado mais um órgão, o Ministério da Desburocratização. Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, criou o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado com a intenção de agir sobre o problema — e nada aconteceu. Mais recentemente, Jair Bolsonaro apresentou emenda constitucional em 2020 sobre o assunto. Algum tempo depois, no entanto, o capitão jogou a toalha diante da resistência do Congresso, além dos riscos de greves e de perda de votos. Por isso, a PEC está parada na Câmara desde setembro de 2021, quando foi aprovada por uma comissão especial.
Agora, apareceu no horizonte alguém com vontade política e poderes para mexer nesse vespeiro. Nas últimas semanas, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), passou a se movimentar para fazer andar a pauta. Em eventos com empresários, pregou a necessidade de aprovar a reforma administrativa. Em todas as oportunidades, cutucou a gestão do presidente Lula, que é refratária à proposta, chamando o presidente a entrar na discussão, porque vai precisar “cortar na carne”. “O governo deve contribuir no debate e ajudar no texto a ser aprovado”, afirmou Lira a VEJA.
A pregação ganhou adeptos rapidamente. Na quarta 30, o cacique recebeu um manifesto pró-reforma assinado por 23 frentes parlamentares. Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), presidente da Frente pelo Brasil Competitivo, argumenta que, enquanto a Câmara faz movimentos na busca do equilíbrio das contas públicas — com as votações do arcabouço fiscal e da reforma tributária —, o Executivo adota medidas “insuficientes” para reorganizar a máquina. “O governo não diminuiu empresas e não diminuiu cargos. Pelo contrário, ampliou. Precisamos não só cortar, mas discutir a eficiência do gasto”, defende. Para Fernando Monteiro (PP-PE), presidente da comissão especial na qual a PEC foi aprovada, a palavra de ordem é “modernização”. “Precisamos que o serviço público seja de excelência”, diz.
Como qualquer proposta para um tema complexo como esse, a PEC não é perfeita, mas é inegável que enfrenta algumas chagas do sistema. Entre outros pontos, o projeto proíbe férias de mais de trinta dias em um ano, a incorporação aos salários de penduricalhos, a promoção automática baseada apenas em tempo de serviço e o pagamento de indenizações retroativas. Também restringe a estabilidade a carreiras típicas de Estado, implanta avaliações periódicas de desempenho e abre a possibilidade de admissão temporária de servidores para atividades específicas (veja o quadro). Só isso já bastaria para aprová-lo.
A principal crítica que se pode fazer à PEC é em relação à sua timidez, porque ela deixa de abarcar pontos importantes. Um deles é o fato de não valer para magistrados, procuradores e militares, por exemplo. É inegável que as cúpulas do Judiciário e do Ministério Público estão na elite do funcionalismo, com salários que não raro ultrapassam o teto de 41 650 reais mensais. Só em julho, nada menos que 83 magistrados dos tribunais superiores receberam acima desse valor.
É preciso ver ainda se o esforço de Lira vai na direção republicana, ou não passa de uma carta incômoda colocada à mesa das negociações para arrancar dividendos políticos de um governo totalmente refratário a esse assunto e disposto a dar passos em direção ao passado, a exemplo do esforço para a volta do imposto sindical. A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, afirmou que a reforma representa a “criminalização” do serviço público, distorcendo o sentido dela. Já o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que a PEC 32 é a “reforma do Paulo Guedes e de Bolsonaro”. “Podemos até topar um modelo de reforma, mas nunca a que foi aprovada na comissão”, ecoa André Figueiredo (CE), líder do PDT.
Por via das dúvidas, o líder do governo, José Guimarães (PT-CE), tem tido conversas com Lira e deputados sobre como se dará o resgate da discussão. É praticamente consenso que, sem incorporar ajustes da base do Planalto, a reforma dificilmente será aprovada sem os votos do governo. Uma das possibilidades é o envio por Lula de outra PEC a ser apensada à atual. A ministra Esther Dweck (Gestão e Inovação em Serviços Públicos) pretende se reunir com parlamentares na segunda semana de setembro para tratar do tema. Resta saber se a disposição é mesmo para valer, ou é apenas jogo de cena. “Temos de ver se realmente o governo enviará uma proposta e quais serão os termos dela, quais os objetivos e os princípios que ela conterá”, afirma Lira.
De olho em suas boas relações com sindicatos do funcionalismo, uma importante base histórica de apoio do PT, o governo sente arrepios diante da possibilidade de discutir questões como a estabilidade dos servidores. Alas mais radicais da esquerda atacam a iniciativa dizendo que ela vai retirar direitos, o que não é verdade. “Não vejo necessidade de se explicitar a garantia dos direitos dos atuais servidores, mas se os líderes entenderam que sim, podemos tornar isso mais claro ainda”, pondera Arthur Lira.
A nova tentativa de fazer uma reforma esbarra na velha inclinação brasileira a fazer um Estado gigantesco. Já em 1808, logo ao chegar ao Rio, dom João VI fundou o Banco do Brasil. O inchaço seguiu pela República, com a proliferação de estatais. Na Constituição de 1988, por pressões sindicalistas, houve a inclusão de vários direitos ao funcionalismo, mas sem as devidas contrapartidas de obrigação de eficiência do serviço.
O problema fica claro em um recente estudo da Fundação Dom Cabral (FDC) sobre qualidade da gestão pública, medida por um índice que vai de 0 a 1. Com a nota 0,684, o Brasil fica abaixo da média de nações como Chile, Costa Rica, Colômbia, México e Uruguai. “Existem distorções estruturais que geram mau aproveitamento de recursos, dão margem a ineficiências e prejudicam as entregas”, avalia Humberto Falcão, professor de gestão pública da FDC. A má distribuição dos salários é outra chaga. Pesquisa do instituto República.org indica que a mediana dos salários nos municípios, onde estão mais de 60% dos servidores do país, é de 2 600 reais, enquanto no Judiciário federal chega a 18 000 reais. “Incluir na reforma os responsáveis por supersalários ajudaria a ‘sanitizar’ o funcionalismo”, avalia o pesquisador Félix Garcia Lopez, do Ipea.
Só o fato de o Brasil gastar proporcionalmente mais que países como a Alemanha com o funcionalismo já justificaria uma discussão séria e urgente sobre o assunto. Por aqui, em valores absolutos, a despesa saltou de 71,6 bilhões de reais com FHC para 337,9 bilhões de reais sob Bolsonaro. Nesse período, a folha ganhou 120 000 funcionários. É importante que Lira leve mesmo adiante a intenção de votar a reforma. Já passou do tempo de começar a eliminar distorções e ineficiências. Trata-se de um passo fundamental para garantir aos contribuintes que sustentam essa máquina um serviço à altura do que os brasileiros precisam e merecem.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857