A pequena cidade de São Pedro de Alcântara, na região metropolitana de Florianópolis, de colonização alemã, tem pouco mais de 5 000 habitantes e quase nenhum motivo para virar notícia. O município, no entanto, ganhou as manchetes na manhã do último dia 14, quando a Polícia Civil interrompeu o encontro de uma célula neonazista em um imóvel da zona rural. No local, foram apreendidas revistas e panfletos sobre o ditador alemão Adolf Hitler, além de adesivos, bordados com suásticas e outros símbolos supremacistas e material digital ligado a grupos extremistas.
Oito pessoas acabaram detidas, todos homens, de 22 a 48 anos, vários com antecedentes criminais. Um deles, Laureano Vieira Toscani, usava tornozeleira eletrônica: era condenado por tentativa de homicídio após atacar judeus em Porto Alegre em 2005 e réu por tentar assassinar um segurança negro em 2009. Outro preso, o personal trainer João Guilherme Correa, foi denunciado pela morte de um casal em briga de neonazistas na região metropolitana de Curitiba em 2009. Havia ainda gente com históricos de lesão corporal, homofobia, ameaça, receptação, porte ilegal de arma de fogo e preconceito religioso.
O episódio, lamentavelmente, não é caso isolado. O número de células neonazistas explodiu no Brasil nos últimos anos: passou de 72 em 2015 para 1 117 em 2022 (veja no quadro), segundo monitoramento feito pela antropóloga Adriana Dias, doutora pela Unicamp, cujo trabalho serve de referência para a polícia e o Ministério Público. Esses grupos atuam no Facebook, Instagram, Twitter e em plataformas menos conhecidas, como a rede social russa VK e a americana Gab, além de fóruns on-line e endereços da deep web, o submundo da internet. O discurso antissemita, racista e xenofóbico também é comum no Telegram, onde usuários declaradamente neonazistas não se preocupam em se esconder.
A presença desse tipo de criminoso no país não é novidade, mas foi em 2019, após a eleição de Jair Bolsonaro, que o fenômeno se multiplicou. Na esteira do discurso radical do chefe do Executivo e da ascensão da extrema direita política, esses grupos se sentiram autorizados a avançar. No último dia 12, o Centro de Formação Paulo Freire, sede do MST em Caruaru, em Pernambuco, foi incendiado e pichado com suásticas e a palavra “mito”, uma referência a Bolsonaro. Após a derrota do presidente na eleição, um vídeo em que bolsonaristas aparecem fazendo uma saudação nazista durante uma manifestação em São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, viralizou nas redes e virou alvo de apuração do MP do estado.
Não é exagero dizer que esses movimentos se identificam com o nacionalismo exacerbado do bolsonarismo. Isso começa pelo slogan de campanha do presidente — “Brasil acima de tudo”, semelhante ao “Deutschland über alles”, que significa “Alemanha acima de tudo”, bordão utilizado na Alemanha de Hitler. Além disso, alguns atos impensados ajudaram a reforçar esse sentimento. No Palácio do Planalto, Bolsonaro se reuniu, por exemplo, com a deputada alemã Beatrix von Storch, neta do ministro das Finanças de Hitler, Lutz Graf Schwerin von Krosigk, e líder do partido de extrema direita AfD. Também vale lembrar o ex-secretário especial da Cultura Roberto Alvim, exonerado em 2020 após fazer um vídeo parafraseando um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels. “Bolsonaro incorpora aquele discurso do homem médio que fala o que pensa. Isso acaba inspirando um subterrâneo que é de extrema direita, violento e radical”, diz Michel Gherman, professor de sociologia da UFRJ e pesquisador do Centro de Estudos de Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém.
A maioria das células neonazistas está em São Paulo e nos estados do Sul, em especial Santa Catarina. O aumento da ação desses grupos entrou na mira das autoridades. O procurador-geral da República, Augusto Aras, por exemplo, manifestou preocupação em conversa com o governador catarinense eleito, Jorginho Mello (PL). Em 2020, o MP do estado criou um núcleo para acompanhar os casos e, em outubro deste ano, uma promotoria especializada. “Não vamos aceitar que venham a Santa Catarina com a finalidade da prática de qualquer tipo de crime que vise a discriminar ou enaltecer o preconceito ou a intolerância”, afirma o promotor Luiz Fernando Pacheco. Desde março, a Polícia Civil local tem uma delegacia especializada em ações criminosas como essas. “Após algumas prisões, eles deram uma recuada. Não deixaram de atuar, mas têm sido mais discretos”, diz o delegado Arthur Lopes.
Além de tentar coibir a presença dos neonazistas, as instituições investigam ameaças a quem denuncia. As vereadoras Maria Tereza Capra (PT), de São Miguel do Oeste, e Giovana Mondardo (PCdoB), de Criciúma, foram perseguidas após criticarem o gesto nazista no protesto bolsonarista. Capra foi alvo de uma moção de repúdio e agora enfrenta um processo de cassação por ter “ofendido” o estado. Com medo de ser agredida, precisou deixar a cidade. “Eu sou ameaçada de morte sempre e, desde 2018, de maneira mais violenta ainda”, relata a pesquisadora Adriana Dias. “Não saio mais de casa.”
O movimento do neonazismo cresceu no país em um momento de ascensão da extrema direita em todo o mundo. Esses criminosos emulam um passado por aqui que parecia ter sido superado. Na primeira metade do século XX, o Brasil foi sede da maior filial do partido nazista fora da Alemanha, com 3 000 membros. Na era Getúlio Vargas, durante o Estado Novo (1937-1945) o governo estreitou relações com a Alemanha e demorou a tomar o lado dos Aliados na guerra. No país, há ainda grupos de extrema direita inspirados pelo integralismo, movimento fascista criado nos anos 1930 pelo deputado Plínio Salgado e cujo lema (“Deus, pátria e família”) é o mesmo utilizado por Bolsonaro. Entre esses movimentos atuais estão a Frente Integralista Brasileira e o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro (MIL-B).
Lutar para impedir uma onda neonazista no Brasil vai muito além da ação da polícia e do MP. Afora o trabalho das empresas de tecnologia para coibir o discurso de ódio, é necessário um arcabouço legal que permita o enfrentamento. O nazismo hoje é punido com base na Lei de Crimes Raciais, e a pena pode chegar a cinco anos de prisão. Tramitam no Senado três projetos de lei para aumentar a punição para oito anos e tipificar criminalmente a apologia ao nazismo, a prática de saudações nazistas e a negação, justificação ou aprovação do Holocausto. “É preciso que nosso Parlamento esteja atento a essas novas formas de crime para que a gente possa, de fato, dar uma resposta mais efetiva”, defende a promotora Lia Nara Dalmutt, de Santa Catarina.
Segundo especialistas, faltam ainda treinamento e melhor compreensão das normas nas polícias, nos MPs e no Judiciário. “Não é só por falta de lei que essas pessoas não são responsabilizadas”, pondera a juíza federal Claudia Maria Dadico, pesquisadora do assunto e autora do livro Crimes de Ódio. Os recentes e chocantes episódios de intolerância precisam, de fato, acender o necessário alerta. A multiplicação de um fenômeno tão negativo — e malévolo — exige uma repressão à altura das autoridades e a veemente repulsa de toda a sociedade.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817