Sempre dado a demonstrar sua nostalgia pelos tempos da ditadura no país, incluindo odes a torturadores, Jair Bolsonaro trouxe à tona também em sua gestão o velho discurso da soberania brasileira sobre a Amazônia, tão caro aos militares do regime, com o argumento simplório de que forças malignas, de governos estrangeiros a ONGs, querem roubar essa riqueza. Na prática, em vez de tomar conta da floresta, o atual governo promoveu a política da “terra de ninguém”. Problemas antigos como a expansão da rede de ilegalidades que se vale dos controles frouxos ganharam uma dimensão inédita. A atividade criminosa se diversificou e se espalhou, em parte pelo vácuo deixado pelo Estado, em parte pelo próprio discurso do presidente, legitimando a ação de grupos que agem à margem da lei. O chocante caso dos assassinatos do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, além de comprovar a força do crime organizado na região, expôs mais uma vez o país ao vexame internacional.
O alerta sobre o desaparecimento ganhou o mundo já no início da semana. Phillips e Pereira sumiram no domingo 5, quando seguiam pelo Rio Itaquaí rumo à cidade de Atalaia do Norte (AM). Antes, acompanharam durante dois dias o trabalho da equipe de Vigilância Indígena, um grupo de autodefesa do Vale do Javari, criado para monitorar as incursões ilegais de traficantes, garimpeiros e pescadores. Foi essa ação que pode ter selado a morte de ambos. Segundo uma das linhas de investigação, após algumas abordagens, nas quais alertaram sobre a ilegalidade da pesca na região, eles teriam entrado na mira dos irmãos Amarildo e Oseney da Costa de Oliveira, conhecidos pela prática na área. Ainda de acordo com essa versão, quando seguiam pelo Itaquaí, Bruno e Dom foram ameaçados pelos pescadores e reagiram fotografando a dupla portando armas. Dessa forma, os assassinatos teriam sido motivados por uma queima de arquivo. Preso há mais de uma semana, Amarildo confessou o crime e, na quinta 15, levou a polícia ao local 3,5 quilômetros selva adentro no qual os cadáveres foram enterrados, depois de terem sido queimados e esquartejados. A polícia não descarta a participação de outras pessoas no crime.
Nascido em Liverpool, Dom, de 57 anos, era colaborador do jornal britânico The Guardian e de outros veículos renomados da imprensa internacional. Tinha feito várias viagens para reportagens no Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru, onde foi morto. Casado com uma brasileira, vivia no Brasil desde 2007, em Salvador. Numa de suas últimas publicações nas redes sociais, mostrou o seu amor pela região. “Amazônia, sua linda”, postou. Bruno, 42, era um indigenista atuante da Fundação Nacional do Índio (Funai), de onde se licenciou no fim de 2019, já no governo Bolsonaro, para trabalhar em uma associação indígena da região, a Unijava. O pedido de afastamento ocorreu após ter sido exonerado do cargo de coordenador de índios isolados e recém-contatados pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier, depois de conduzir uma operação que terminou na destruição de sessenta balsas usadas por garimpeiros ilegais.
O governo brasileiro reagiu tarde ao episódio do desaparecimento de Dom e de Bruno — e reagiu mal. Enquanto uma força-tarefa vasculhava a região, Bolsonaro enfileirava declarações chocantes e cruéis. Primeiro, afirmou que os dois haviam ido para uma “aventura que não é recomendável”. Depois, incomodou-se com o destaque na imprensa e a preocupação que o caso despertava no Congresso, no STF e na sociedade civil. Por fim, partiu para a ignomínia ao dizer que Dom era “malvisto” na região por “fazer muita matéria contra garimpeiro”. O vice, Hamilton Mourão, não foi mais feliz. “Entraram numa área que é perigosa sem pedir escolta”, afirmou. A reação fora do país foi bem diferente. No Parlamento britânico, o primeiro-ministro Boris Johnson e sua antecessora, Theresa May, cobraram as autoridades do Brasil. “Estamos profundamente preocupados”, disse o premiê. A imprensa internacional acompanhou o episódio com atenção. “Os desaparecimentos são um capítulo particularmente sombrio na recente história sangrenta da Amazônia”, resumiu o The New York Times, o principal jornal do mundo.
A constatação do diário americano é certeira. A pesca ilegal, baseada na exploração de pirarucus, peixe considerado valioso no mercado local, é só uma das muitas atividades criminosas que vêm ganhando corpo na região. Há suspeita de que os pescadores clandestinos tenham ligação com o narcotráfico, já que a região faz tríplice fronteira com Peru e Colômbia e seus rios são estratégicos como rota de passagem de cocaína — a participação de traficantes, inclusive, é uma das hipóteses sob apuração na morte de Dom e Bruno. A PF já investiga se a venda de peixes é utilizada para lavar dinheiro do comércio de drogas produzidas nos países vizinhos e vendidas a facções criminosas como PCC e Comando Vermelho, que atuam na área. Segundo um estudo de 2019 do geógrafo Conrado Octavio e do ecólogo Hilton Nascimento, do Centro Trabalho Indigenista do Instituto Socioambiental (ISA), o narcotráfico “constitui a principal força econômica da região, articulando-se a diversas outras atividades, como a exploração madeireira, o garimpo, a pesca (sobretudo voltada à exportação) e uma variedade de comércios e serviços”.
O crime organizado não tomou conta da Amazônia por acaso. Embora a violência seja parte da paisagem há décadas — como mostram os assassinatos do seringueiro Chico Mendes em 1988, no Acre, e da missionária americana Dorothy Stang em 2005, no Pará —, inegavelmente a retração do Estado nos últimos anos favoreceu a sua expansão. O Vale do Javari tornou-se um caso exemplar. O local, de 85 000 quilômetros quadrados (equivalente à área da Áustria), abriga mais de 6 000 indígenas, de 26 etnias, o que inclui vários isolados. Com o recuo da fiscalização, tornou-se ponto de invasões de caçadores, pescadores, garimpeiros, madeireiros e traficantes de drogas. Foram ao menos oito episódios de violência armada desde 2018, segundo a Indigenistas Associados (INA), que reúne servidores da Funai. Antes da morte de Bruno Pereira, um colaborador da fundação, Maxciel Pereira dos Santos, foi assassinado em 2019, na presença da enteada e da mulher, em um caso ainda sem solução. Nos últimos anos, houve vários ataques a bases da Funai, o último deles há seis meses, feito justamente por pescadores ilegais.
Embora a deterioração da presença do Estado na Amazônia envolva a atuação de outros órgãos, como Ibama, ICMBio e Inpe, o caso da Funai é o mais icônico. O alerta sobre o desmonte foi tornado público pelos próprios servidores em um dossiê de quase 200 páginas divulgado na semana passada, pela INA e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que aponta o sucateamento da instituição, com a diminuição de orçamento e de pessoal (veja o quadro) e o seu aparelhamento, com o afastamento de indigenistas e a colocação em postos de comando de gente que não tem experiência na questão. Um caso clássico ocorreu no início de 2020, envolvendo ironicamente o que aconteceu após a saída de Bruno Pereira da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. Na ocasião, Marcelo Xavier, presidente o órgão, nomeou para o posto o missionário evangélico Ricardo Lopes Dias. O religioso atuava em uma missão conhecida exatamente por forçar o contato com índios isolados para tentar a catequização. A nomeação, de tão esdrúxula, durou nove meses. Hoje, dos 39 coordenadores regionais, 22 são militares ou policiais — apenas dois são servidores de carreira. O resultado, apontam os autores do dossiê, é a paralisia da fundação e o aumento da violência. “Há inúmeros servidores vivendo sob ameaças em territórios desprotegidos, inclusive se afastando da Funai por não conseguir cumprir sua própria missão funcional”, conta a pesquisadora Isabella Lunelli. Sob a direção de Xavier, a Funai passou a viver um clima de perseguição institucional contra funcionários, com processos disciplinares em série e demissões sem justificativa. O próprio Bruno Pereira é apontado por colegas como vítima da perseguição institucional. “Chamou muita atenção que essa demissão tenha acontecido após uma operação de combate ao garimpo no Vale do Javari”, afirma o coordenador da Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres ou Isolados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Guenter Loebens.
A política anti-indígena da Funai apontada no relatório faz parte da visão aloprada de Bolsonaro para a Amazônia. Em novembro de 2018, já eleito, ele anunciou que “no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”. Em fevereiro deste ano, orgulhou-se de ter cumprido a promessa. Comprou brigas com ONGs, perdeu verbas de fundos internacionais e deu carta branca ao ministro Ricardo Salles para tocar uma política ambiental que deu voz a ruralistas, madeireiros e garimpeiros. A estratégia equivocada de abrir a todo custo a Amazônia à exploração, aliada ao enxugamento do aparato de fiscalização, serviu de senha para a degringolação do delicado ecossistema humano da região. “As instâncias de proteção aos povos da floresta e ao meio ambiente vêm sendo sistematicamente desestruturadas e desacreditadas. A perda da vida de Dom e Bruno está no contexto de morte da própria Amazônia”, diz Mauricio Voivodic, diretor-executivo da WWF-Brasil.
Os assassinatos terão ampla repercussão negativa e ajudarão a manter o Brasil no banco dos réus da opinião pública mundial, o que significa o fechamento de mercados, produzindo um efeito contrário ao que o presidente esperava ao “abrir” a floresta para exploração. E, com certeza, a Amazônia sairá de tema lateral para central da campanha eleitoral ajudando a desgastar ainda mais o governo. No aspecto criminal, é preciso que se faça justiça à morte de Dom e Bruno, com as punições aos executores e eventuais mandantes. Em paralelo, a criminalidade que atinge proporções amazônicas na maior floresta tropical do mundo também precisa ser combatida com urgência, sob risco da repetição de tragédias como a da brutal execução do indigenista e do jornalista.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794