A política de cotas — implementada no Brasil em 2012 e renovada no ano passado por pelo menos mais dez anos, com pequenas correções — é decisão que faz o Brasil aprender, entre avanços e recuos, enquanto a história caminha diante de nossos olhos. Em pouco mais de uma década de vigência, os resultados romperam os preconceitos de quem a considerava uma decisão equivocada — e, nesse processo, a sociedade já pode vê-la de outro modo, ancorada em estatísticas. Dizia-se que, dadas as condições precárias dos favorecidos, a qualidade do ensino superior cairia, a evasão escolar aumentaria e haveria um acirramento dos conflitos raciais. Nada disso aconteceu. Levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) revela que os estudantes beneficiados pelas cotas têm desempenho igual ou superior aos dos que ingressaram pelo sistema de ampla concorrência. A taxa de permanência e conclusão é 10% superior entre os cotistas, justamente pela chance que lhes é aberta de ascensão. Em 2012, exatos 40 661 alunos cursaram a graduação apoiados em caminho de ação afirmativa. Em 2022, foram 108 616, crescimento de 167%.
A ampliação do alcance da iniciativa não concede imunidade a tropeços. Recentemente, um comitê da USP rechaçou a matrícula de dois estudantes que se autodeclararam cotistas, por considerar que eles não atendiam aos requisitos para ter direito a uma vaga destinada a pessoas pardas ou negras. A avaliação é feita a partir das características físicas, e não da ancestralidade dos candidatos. A Justiça, acertadamente, pediu a reintegração de ambos. Os meninos sofrem na pele por serem pardos — aos olhos da sociedade, não são negros o suficiente para terem acesso imediato à positiva engrenagem das cotas, nem brancos o bastante para escaparem do racismo estrutural.
Muitos obstáculos ainda despontarão no horizonte, considerando-se a delicadeza do tema. Mesmo nos EUA — onde nasceu a expressão “ação afirmativa”, criada por John Kennedy depois de um episódio em 1957 com uma menina negra, Dorothy Counts, de 15 anos, recebida com vaias em um colégio majoritariamente de brancos —, há curvas sinuosas. No ano passado, a Suprema Corte, de maioria conservadora, decidiu banir a política de cotas das instituições de ensino. Entre os americanos, porém, tanto tempo de compensação (desde meados da década de 1960) autoriza o abandono da regra, com a emergência de uma classe média negra consolidada com a ajuda das cotas.
O Brasil parece ainda viver no passado, em flagrante atraso. O ideal, a rigor, seria a inexistência das políticas compensatórias — solução provisória para abrandar as desigualdades. Sua implantação é expressão do terrível desequilíbrio étnico e social do país. As cotas, raciais ou sociais, são, portanto, atalho para desatar um triste (e histórico) nó. O desejável é que elas sejam temporárias e, em seu lugar, abram-se escolas de qualidade para todos, negros e brancos, pobres e ricos, de modo que as oportunidades sejam iguais para todos — e o mérito de cada um, apenas o mérito, torne-se a medida do triunfo individual. Infelizmente, estamos longe desse tão sonhado momento.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885